Londres – O World News Day (Dia Mundial da Notícia), comemorado neste 28 de setembro, é uma oportunidade para refletir sobre o papel da imprensa para melhorar a sociedade e também para pensar como combater ameaças como violência contra jornalistas, assédio judicial e policial, perseguições e deterioração da sustentabilidade financeira que levam ao fim de veículos importantes para as suas comunidades.
O Índice Anual de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), publicado anualmente, avalia a situação de 180 países sob sete indicadores, fornecendo elementos para identificar o que fazer e o que não fazer para que o jornalismo sobreviva às ameaças e prospere.
O Brasil ficou este ano em 111º lugar no ranking. Embora a metodologia do estudo tenha mudado, houve uma queda de quatro posições e o país passou para a zona vermelha, onde a situação é considerada “difícil”.
O Dia Mundial da Notícia
A ideia do World News Day nasceu há cinco anos no Canadá, por iniciativa do editor-chefe do jornal The Globe and Mail, David Walmsley.
A comemoração é organizada pela Fundação Canadense de Jornalismo (CJF) e pelo Fórum Mundial de Editores (WEF), reunindo mais de 500 veículos de todo o mundo compartilhando reportagens relevantes em uma só plataforma.
O objetivo é valorizar o jornalismo de qualidade diante de ameaças constantes e variadas.
Essas ameaças são medidas anualmente pela Repórteres Sem Fronteiras de forma estruturada, levando em conta o cenário de mídia, o contexto político, o enquadramento jurídico, o contexto econômico, o contexto sociocultural e a segurança para a prática do jornalismo.
Nos anos de 2021 e 2022 alguns países se destacaram na mídia por obstáculos ao trabalho da imprensa, como o México, o Afeganistão, a Rússia e a China, que não apenas reprime a mídia em seu próprio território como estendeu as perseguições a antes livre Hong Kong.
A seleção dos três melhores e três piores do ranking deste ano não reflete acontecimentos recentes e não conta toda a história do que ocorre nos outros 174 países analisados, mas é uma referência do que vem dando certo, do que começa a dar errado e do que está muito errado.
Os campeões em liberdade de imprensa
Noruega: estrutura de proteção à imprensa ‘robusta’
Há seis anos a Noruega lidera o ranking da RSF, e nos anos anteriores ficou em primeiro ou segundo lugar na lista de países onde a imprensa atua com liberdade.
Na análise da RSF, “estrutura legal da Noruega que protege a liberdade de imprensa é robusta e o mercado de mídia é vibrante, apresentando uma forte emissora de serviço público e um setor privado diversificado com editoras garantindo ampla independência editorial”.
O quadro destaca um dos maiores desafios para o jornalismo independente, a sustentabilidade financeira que permite liberdade, uma das questões a se refletir nesse Dia Mundial da Notícia.
Segundo a RSF, “as autoridades da concorrência protegem o pluralismo em termos de propriedade, e a política de “IVA zero” nos meios de comunicação contribui para manter a qualidade e o pluralismo”.
O apoio do setor político e do Estado são outros destaques no país que serve como inspiração e soam como sonho em comparação à situação de outras nações:
A mídia norueguesa opera em um ambiente político favorável. Em geral, os políticos noruegueses se abstêm de rotular a cobertura desfavorável como “notícias falsas” e de menosprezar seus autores.Parlamentares e ministros evitam abordar os conselhos editoriais de publicações subsidiadas por órgãos públicos.
De modo geral, a sociedade e o Estado incentivam o jornalismo independente e a troca de ideias.Ocasionalmente, profissionais de mídia são assediados online.
A segurança também é invejável. No mundo digital, as ameaças online são inevitáveis e atingem até mesmo o país campeão: um em cada quatro jornalistas já recebeu alguma.
A diferença é que elas não assumem a proporção de outros países, como o Brasil, e não resultam em violência real.
Leia também | Livro do Knight Center reúne estudos de caso sobre violência contra jornalistas na América Latina
Dinamarca: políticos e instituições respeitam liberdade de imprensa
A Dinamarca, que ocupa o segundo lugar, vem oscilando mas em geral ocupa boas posições na lista. Era a 4ªa em 2017, perdeu cinco posições no ano seguinte mas em 2019 subiu para 5º, em 2020 para 3º , em 2021 voltou ao 4º e este ano só perdeu para a Noruega.
Assim como acontece no país vizinho, “políticos e instituições respeitam a liberdade de imprensa em geral”, avaliou a RSF.
E a sustentabilidade financeira da mídia é a base para a independência, como relata a organização:
O sistema de subsídios fornece a maior parte do financiamento para as emissoras públicas, sendo o restante alocado para a mídia privada. O dinheiro é distribuído por instituições públicas de acordo com um princípio de independência.
No caso das emissoras, a instituição intermediária é o regulador de mídia que – embora nomeado pelo governo – representa várias visões de especialistas em mídia.
Os jornalistas trabalham com segurança, mas o sexismo foi salientado como uma preocupação, devido a um documentário que denunciou más práticas na emissora pública TV2.
E o debate sobre imigração foi apontado como responsável por hostilidade ocasional em algumas áreas de grandes cidades.
No entanto, mesmo em um país com a segunda mais alta posição no ranking de liberdade de imprensa as ameaças existem.
A análise da RSF fez uma observação sobre uma tentativa de intimidação ocorrida no fim de 2021:
As agências de inteligência policial e de defesa realizaram uma tentativa extraordinária de intimidar jornalistas e ameaçar o sigilo de suas fontes, ao mesmo tempo em que se referiam a cláusulas legais relacionadas à alta traição, embora nunca sejam aplicadas em tempos de paz.
Sem fornecer nenhuma informação específica ou razões para sua decisão, as agências alertaram a mídia contra a publicação de informações classificadas relacionadas à segurança nacional sob a ameaça de penas de prisão.
A tentativa foi rechaçada e não resultou em punições concretas, outra boa lição para o Dia Mundial da Notícia. Se os fundamentos de liberdade de imprensa existem, é mais difícil concretizar violações.
Leia também | Como a Itália está usando assédio judicial para quebrar sigilo da fonte de jornalistas investigativos
Suécia, a primeira do mundo a ter uma lei de imprensa
A Suécia é outra que vem se revezando nas primeiras cinco posições do ranking nos últimos anos. E o principal motivo apontado é algo que aconteceu em 1766, quando o país se tornou o primeiro do mundo a adotar uma lei de liberdade de imprensa.
Entre os dispositivos desta lei está o afastamento de políticos das empresas de mídia, o que não acontece em muitos países, incluindo o Brasil:
Hoje, a mídia é independente do poder político e responsabiliza os políticos pelo interesse público.
A propriedade da mídia é separada dos políticos em funções executivas e legislativas.
Nenhum político ativo pode fazer parte do conselho de administração de meios de comunicação públicos ou reguladores de mídia.
O apoio econômico à mídia independente e ao jornalistas é outro fator que contribuiu para a posição da Suécia no ranking.
Subsídios públicos são bastante fáceis de obter sem discriminar jornais com visões políticas extremistas – embora isso tenha sido criticado.
Em geral, os jornalistas na Suécia trabalham de forma livre e independente, sem grandes restrições ou riscos de serem subornados ou demitidos por causa de suas opiniões.
Não foram registradas tentativas de interferência no trabalho da imprensa no ano passado, e a RSF destaca a proteção em sua análise do enquadramento jurídico:
As fontes jornalísticas são protegidas por lei e o princípio do acesso à informação pública é uma pedra angular da democracia sueca.
A segurança dos jornalistas também é destacada, embora alguns meios de comunicação tenham recebido ameaças de bomba no último ano.
Mas nem a segura Suécia está livre de outro flagelo, o assédio online a jornalistas.
Segundo a RSF, quase um em cada cinco repórteres diz ter sido vítima de tais ataques nos últimos três anos, e 40% dos jornalistas que receberam ameaças afirmam que isso os impediu de cobrir determinados temas.
No entanto, a situação pode mudar a partir deste ano. O bloco parlamentar de centro-esquerda que governava o país perdeu a maioria para a coligação de direita e extrema-direita, aumentando as tensões políticas.
A Repórteres Sem Fronteiras protestou em um comunicado contra o bloqueio de acesso de vários jornalistas na noite das eleições, incluindo representantes da mídia internacional.
Sem motivos para comemorar o Dia Mundial da Notícia
Na outra ponta, sem qualquer motivo para celebrar o Dia Mundial da Notícia, estão a Coreia do Norte, a Eritreia e o Irã, que nos últimos dias virou palco de atos de violência que resultaram em prisões de pelo menos 20 jornalistas.
Coreia do Norte, sem mídia independente
De 2015 a 2021 a Coreia do Norte alterna posições no ranking com a Eritreia e o Turcomenistão como os três piores em liberdade de imprensa.
Não é preciso muito para explicar o motivo: o jornalismo independente é simplesmente proibido, como relata a RSF.
A Agência Central de Notícias da Coreia (KCNA), porta-voz oficial do governo, é a única fonte de notícias permitida para a mídia da Coreia do Norte.
O regime controla rigidamente a produção e distribuição de informações e proíbe estritamente o jornalismo independente.
Algumas agências de imprensa estrangeiras, como a Agence-France Presse (AFP) e a Kyodo News, estão oficialmente presentes no país, mas operam sob vigilância apertada, o que prejudica sua capacidade de reportagem.
Segundo a organização, o líder Kim Jong-un, filho e neto dos falecidos ditadores Kim Jong-il e Kim Il-sung, “é o líder supremo de um regime totalitário que baseia seu poder na vigilância, repressão, censura e propaganda”, e “garante pessoalmente que a mídia apenas transmita conteúdo que elogie o partido, os militares e a si mesmo”.
O acesso a notícias pela população é restringido também por meio de tecnologia que permite controlar completamente as comunicações dentro da intranet do país, valendo penas severas para os que conseguem burlar o sistemas segundo a RSF:
Os norte-coreanos podem ser enviados para um campo de concentração por olharem para um meio de comunicação online baseado fora do país.
Eritreia, mídia sujeita aos caprichos do ditador
A exemplo da Coreia do Norte, também na Eritreia não há mídia independente e o controle do noticiário por parte do ditador Issayas Afeworki é total.
As únicas “mídias” são aquelas controladas diretamente pelo Ministério da Informação – uma agência de notícias, algumas publicações e a Eri TV .
Eles estão sujeitos a supervisão estrita e devem retransmitir a propaganda do regime. O acesso online a notícias e informações é muito limitado.
Ironicamente, a liberdade de imprensa é garantida pela constituição – mas a experiência mostra que em regimes autoritários a existência de leis é ignorada.
Nesse ambiente de terror, a Eritreia figura como um dos maiores carcereiros de jornalistas do mundo. Em abril, quando a última edição do Índice de Liberdade de Imprensa foi publicada, havia pelo menos 11 detidos, sem acesso aos seus familiares ou a advogados.
“Nós não vamos libertá-lo e ele não terá um julgamento”, disse o presidente em uma entrevista de 2009, referindo-se a Dawit Isaak , um jornalista com dupla nacionalidade sueca e eritreia que foi mantido incomunicável em condições terríveis nos últimos 20 anos.
A vigilância é permanente e onipresente”, diz a RSF.
Irã: mídia ‘manipulada por forças estrangeiras’
O regime autoritário do Irã não chegou a banir a mídia independente como a Coreia do Norte e a Eritreia, mas o ambiente é de terror, como relata a RSF em sua análise:
O líder supremo Ali Khamenei frequentemente acusa a mídia independente de ser manipulada por forças estrangeiras.
Como chefe das principais instituições políticas, militares e judiciais do país, ele pode ordenar a prisão de jornalistas e sentenciá-los a longas penas de prisão e até mesmo à pena de morte.
A organização contabiliza pelo menos 1 mil profissionais de imprensa e jornalistas-cidadãos presos, detidos, assassinados, desaparecidos ou executados pelo regime iraniano desde 1979.
E a repressão à liberdade de imprensa não se limita às fronteiras do Irã. Os jornalistas iranianos que trabalham para a mídia internacional também estão sujeitos a muito assédio.
A severa crise econômica enfrentada pelo país tornou a situação ainda mais grave para a imprensa independente. Vários meios de comunicação foram fechados nos últimos anos e cerca de 100 jornalistas perderam seus empregos, segundo a RSF.
Em seu relatório de abril, a RSF fez uma ressalva positiva, sobre o contexto sociocultural, que acabou sendo um presságio pelo que estava por acontecer no país:
A sociedade civil iraniana é dinâmica e progressiva, graças, entre outras coisas, à juventude e às mulheres do país, que exigem mais liberdade e respeito pelos direitos fundamentais, incluindo a liberdade de ser informado.
No entanto, a abordagem de temas relacionados com a religião e os direitos das mulheres continua a ser problemática.
A morte da jovem Masha Amini depois de ser presa por estar usando o tradicional véu de forma incorreta desencadeou manifestações nas ruas durante a semana passada, reprimidas com violência pelo governo.
Jornalistas que documentaram os protestos ou comentaram a situação foram presos nas ruas e até caçados em suas casas, consolidando o Irã como um dos países sem motivos para comemorar este Dia Mundial da Notícia.
Leia também | Ao menos 20 jornalistas são presos por cobertura ou posts sobre protestos no Irã, diz ONG