Londres – O golpe em Mianmar, em 1º de fevereiro de 2021, lançou o país em uma crise de liberdade de imprensa e de expressão que completa dois anos. São comuns medidas como a de vistoriar celulares dos cidadãos nas ruas para reprimir conteúdo subversivo contra a junta militar que derrubou o governo de Aung San Suu Ky, atualmente cumprindo pena de 38 anos de prisão. 

A imprensa passou a ser severamente reprimida. Veículos de oposição foram proibidos de operar e mais de 60 profissionais de imprensa estão presos. Pelo menos cinco foram mortos, alguns sob custódia do Estado ou atacados por forças militares. Bloqueios de internet e vigilância suprimiram a liberdade de expressão. 

Devido ao clima de medo, as manifestações populares que tomaram as ruas nos primeiros meses deram lugar no dia do segundo aniversário a um protesto silencioso, que ganhou o nome de “Silent Strike”, levando as ruas a ficarem vazias e ao fechamento do comércio por algumas horas. 

De acordo com a Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP), até 31 de janeiro de 2023 os militares mataram 2.940 ativistas e civis, e mantêm 13.763 pessoas detidas.

Pelo menos 143 pessoas foram condenadas à morte e quatro foram executadas desde o golpe. Segundo monitoramento da Federação Internacional de Jornalistas, pelo menos 62 jornalistas estão presos ou detidos pela polícia, e a situação vem se agravando. 

Três profissionais de imprensa foram mortos em Mianmar desde dezembro. No dia 14 daquele mês, o fotógrafo freelancer Soe Niang foi assassinado após quatro dias de tortura. Em 25 de dezembro, o editor do Federal News Journal, Sai Win Aung, foi morto a tiros pelas forças armadas durante uma reportagem sobre refugiados.

Em 9 de janeiro, o corpo de Pu Tuidim, fundador do coletivo de mídia Burma News International (BNI) e do canal de notícias Chin Khonumthung Media Group, foi encontrado morto depois de ter sido sequestrado.

“Nos últimos dois anos, as condições de liberdade de imprensa em Mianmar se deterioraram drasticamente devido ao assédio, prisão e assassinato de jornalistas pela junta militar”, disse em nota Shawn Crispin, representante sênior do Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) no Sudeste Asiático.

“A intenção declarada da junta de restaurar a democracia por meio de eleições não terá credibilidade enquanto a imprensa sitiada de Mianmar continuar a viver sob medo e repressão.”

As organizações que acompanham a situação da liberdade de imprensa no mundo usam metodologias diferentes para contabilizar o número de jornalistas presos, mortos e feridos, levando em conta aspectos como vinculação a uma empresa jornalística ou comprovação da motivação do crime ou da detenção.

O CPJ afirma que Mianmar fechou 2022 na posição de terceiro pior carcereiro de jornalistas do mundo, com pelo menos 42 jornalistas presos na época do censo realizado pela organização, em 1º de dezembro de 2022. 

Para a Repórteres Sem Fronteiras, o país está em segundo lugar em número de profissionais de imprensa presos (atrás da China), com 62 deles atrás das grades, mesmo número da Federação Internacional. 

Os números variam, mas a gravidade da situação é inquestionável. O país está agora em 176º lugar entre 180 nações no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2022 da RSF. 

Em outubro, uma anistia geral a presos decretada pelo governo de Mianmar liberou alguns jornalistas, mas recebeu críticas de organizações de direitos humanos por ter sido parcial e aparentemente incluir condenados por crimes comuns e não por sua posição contra o golpe. 

Notícias falsas e incitação ao golpe em Mianmar 

A maioria dos jornalistas de Mianmar condenados por seu trabalho depois do golpe foi acusada com base no Artigo 505(a) do código penal, que pune “incitação” e “notícias falsas” com sentenças de dois e três anos de prisão, explica o CPJ. 

Entre eles estão Kaung Sett Lin, fotógrafo da Myanmar Pressphoto Agency, e o operador de câmera Hmu Moh Moh Tun, ambos cumprindo sentenças de três anos.

Os jornalistas foram presos após serem gravemente feridos em 5 de dezembro de 2021, enquanto cobriam um protesto antigolpe em Yangon, onde as forças de segurança atiraram e mataram vários manifestantes.

Outros jornalistas foram condenados com mais severidade pela Lei Antiterrorista por reportar sobre os muitos grupos de resistência armada que lutam contra o regime militar e repressões relacionadas.

Esse é o caso do repórter Maung Maung Myo, do Mekong News, atualmente cumprindo uma sentença de seis anos proferida em julho de 2022. Ele foi condenado por posse de fotos e entrevistas com as Forças de Defesa do Povo, um dos grupos insurgentes que lutam contra o regime militar.

Htet Htet Khine, colaborador da BBC Media Action, está cumprindo uma sentença de cinco anos de acordo com o Artigo 505(a) e a Seção 17(1) da Lei de Associação Ilegal, resquício da era colonial, por contatar as chamadas “organizações ilegais”.

Vigilância e bloqueios de internet em Mianmar 

A repressão não foi apenas sobre a imprensa. Os cidadãos foram privados de seu direito de se informar e de se manifestar por meio da internet e das redes sociais. 

Segundo a organização Access Now, que defende os direitos humanos digitais, o setor de telecomunicações de Mianmar agora é totalmente controlado pelos militares, que estabeleceram “um sistema de vigilância sem precedentes”.

Em uma análise sobre a situação de dois anos após o golpe militar, a ONG explica que quando as duas últimas operadoras de telecomunicações de propriedade internacional em Mianmar, Telenor e Ooredoo, venderam suas operações no país, os militares ganharam o poder de ativar a vigilância de interceptação em todas as redes.

“Dessa forma, passaram, a rastrear, atingir e eliminar aqueles que resistem ao regime, e ganharam acesso a uma poderosa infraestrutura de propaganda política” diz a Access Now. 

“Os militares continuam a fechar a internet para esconder violações brutais dos direitos humanos.

As conexões de Internet, wi-fi, celular e fixo são fechadas regularmente, na maioria das vezes em regiões onde a resistência contra os militares é mais forte. Em 2022, todos os municípios de Mianmar sofreram interrupções do acesso à internet.”

Relatório documenta violações 

No Dia Internacional para Acabar com a Impunidade de Crimes Contra Jornalistas em 2 de novembro de 2022, a Federação Internacional de Jornalistas publicou um relatório sobre a situação dos jornalistas em Mianmar, instando a comunidade internacional a aumentar a pressão sobre a junta militar.

Além de prisões, condenações e mortes, o relatório constatou que centenas de jornalistas foram forçados a encontrar trabalho alternativo para sobreviver, já que muitos foram forçados a se esconder por causa dos fechamentos de veículos de mídia, blecautes de satélites, confisco de telefones celulares e espancamentos.