Londres – Uma nova pesquisa da Thomson Reuters Foundation e do instituto Tow Center for Digital Journalism revelou a extensão de uma das maiores ameaças à liberdade de imprensa no mundo: o assédio judicial.
O Brasil é um dos países em que jornalistas, sobretudo mulheres, foram ou ainda estão sendo alvo de processos judiciais, uma prática que se intensificou durante o governo de Jair Bolsonaro.
O Tow Center ouviu 37 especialistas em liberdade de imprensa e mais de 500 ex-alunos dos programas de treinamento da Thomson Reuters em 106 países para compreender a extensão do problema e formular recomendações.
Assédio judicial contra a imprensa em números
Os números comprovam a gravidade da situação: 47,6% dos entrevistados relataram ameaças legais como resultado de seu trabalho, seja diretamente ou voltadas contra a empresa jornalística a que pertencem.
Segundo o estudo, 121 jornalistas foram presos por difamação entre os anos 2000 e 2022 no mundo, numa média de quase um a cada dois meses.
O trabalho identificou oito ameaças principais. Uma delas é a abertura de processos de calúnia e difamação. Trata-se de um dos principais recursos usados para censurar jornalistas, impedir o debate público e proteger poderosos de críticas legítimas.
Os pesquisadores observam que essa prática não é novidade, mas se tornou mais comum nos últimos cinco anos, facilitada por leis que entraram em vigor em alguns países.
O estudo destaca o caso do jornalista peruano Christopher Acosta. Em 2021, ele publicou um livro sobre o político e empresário César Acuña, denunciando um esquema de compra de votos em eleições.
Um ano depois, foi condenado a pagar uma multa de mais de US$ 100 mil e recebeu pena de dois anos de prisão, com suspensão condicional. O gerente da editora, a Penguin House, também foi condenado.
Leia também | Jornalista investigativo e editora são condenados à prisão no Peru por livro sobre César Acuña
Há também os chamados SLAPPs (abreviação de Ações Judiciais Estratégicas Contra a Participação Pública), sem fundamento ou mérito.
Seu principal objetivo é silenciar vozes críticas por meio de processos caros.
Muitos desses processos acabam retirados pelos autores, mas enquanto estão em curso obrigam os jornalistas e veículos de imprensa a contratar advogados para se defender, além de os deixarem expostos a críticas por supostas más práticas jornalísticas que depois não se confirmam.
Leia também | Empresário desiste de processo contra a jornalista filipina Maria Ressa
Processos por espionagem
Outra linha de assédio judicial adotada contra a imprensa é acusar jornalistas de espionagem, como a Rússia fez com diversos profissionais locais e com o americano Evan Gershkovich, do Wall Street Journal.
Ele está preso há mais de um mês e pode pegar 20 anos de cadeia se não for trocado por prisioneiros russos, como analistas acreditam ser a intenção do governo de Vladimir Putin.
A China é igualmente apontada como outro país que lança mão de acusações de espionagem contra membros da imprensa, assim como Nicarágua, Bielorrússia e Bangladesh.
Há também processos baseados em acusações por supostos crimes cibernéticos, uma forma de punir notícias desfavoráveis postadas em redes sociais por jornalistas.
O maior exemplo desse tipo de assédio judicial é o da jornalista filipina Maria Ressa, ganhadora do Nobel da Paz.
Dos mais de 20 processos abertos pelo governo filipino contra ela e seu site, o Rappler, dezoito são baseados em alegações de difamação cibernética ou difamação pura.
Leia também | Jornalista Nobel da Paz é inocentada de crime de evasão fiscal, mas ainda pode ser presa por difamação
Fake news, argumento para assédio judicial
Quando as notícias são desfavoráveis, também usa-se a justiça para desqualificá-las por meio de ações judiciais que as apontam como fake news. Isso virou moda na era da pandemia. O estudo contabilizou mais de 50 casos em 2021.
A pesquisa lista ainda o assédio judicial embasado em legislações de segurança nacional, usadas para processar veículos e profissionais de imprensa por terrorismo ou extremismo.
Isso acontece sobretudo em resposta a notícias a respeito de movimentos pró-democracia, em nações como Rússia, Índia, Mianmar, Etiópia, Paquistão, Camarões, Moçambique, Egito, Argélia, Arábia Saudita e Turquia.
A Turquia é destacada no estudo como um dos países que se utilizam dessa prática. Com eleições marcadas para o dia 14 de maio, o país governado por Recep Tayyip Erdogan prendeu no fim de abril mais de 128 opositores curdos, incluindo dez jornalistas.
Em outubro passado, uma outra operação levou para a cadeia onze profissionais de imprensa, acusados de terrorismo.
Leia também | A dias das eleições, governo Erdogan prende 128 jornalistas e opositores em blitz na madrugada
Crimes financeiros têm sido outra linha de assédio adotada por vários países, inclusive na América Latina.
O premiado jornalista José Zamora, fundador e editor do elPeriódico, da Guatemala, está preso e enfrenta julgamento por acusações de crimes fiscais por parte do governo.
O jornal impresso deixou de circular e a publicação foi reduzida à sua versão online, demonstrando como o assédio pode funcionar para restringir o alcance de notícias críticas.
Por fim, há uma ameaça judicial anacrônica mas que ainda é usada: acusar jornalistas de crime de lesa-majestade ou de sedição, um instituto jurídico de épocas imperiais, criminalizando notícias negativas contra membros da realeza e autoridades.
O estudo aponta o uso dessa prática na Malásia, Índia, Hong Kong e Tailândia.
Leia também | Para escapar de prisão perpétua, jornalistas de Hong Kong admitem ter praticado ‘conluio’
Medidas recomendadas
Os pesquisadores citaram ainda outras formas de intimidar a imprensa por via judicial, mediante o uso de acusações como de propaganda contra o Estado, quebra da paz social, obstrução de autoridade ou recusa em dispersar (em manifestações), blasfêmia religiosa, discurso de ódio e infração a leis imigratórias.
Para amenizar a situação, o estudo recomenda medidas como o financiamento de apoio jurídico a jornalistas, esforços globais para descriminalizar acusações de difamação e o oferecimento de apoio a jornalistas que tiveram que se auto-exilar por conta do assédio judicial sofrido em seus países.
Essa última recomendação atenderia aos muitos jornalistas que enfrentam dificuldades para iniciar uma nova vida e acabam deixando o jornalismo, como demonstrou um relatório recente documentando a situação de profissionais de imprensa que tiveram que sair de Hong Kong para evitar prisões e perseguições.
Leia também | Fotos e relatos sobre a guerra na Ucrânia são destaque no Pulitzer de jornalismo 2023; conheça os vencedores