Diante de uma internet tomada pelo ódio e fake news, repleta de violações de direitos humanos e plataformas que lucram com isso, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou a proposta de um novo código de conduta pedindo por “uma mudança fundamental nas estruturas” dos espaços digitais.
O alerta veio do secretário-geral da instituição, António Guterres, que apresentou uma proposta para transformar este cenário, com direções para empresas de tecnologia, entidades governamentais, formuladores de políticas e demais partes envolvidas.
O representante alerta sobre o impacto da desinformação em diversas esferas, cuja cultura de ódio chega a impactar até mesmo as missões de paz dos boinas-azuis — tropas da entidade formadas por civis e militares.
Código da ONU quer uma internet que volte a ser ‘fonte de esperança’
Apresentado em uma entrevista coletiva, em Nova York, o documento faz parte da série “Nossa Agenda Comum”, e coloca a integridade da informação como assunto central da cooperação entre todas as partes envolvidas.
A organização disse querer trabalhar na criação de princípios para um “futuro digital aberto, livre e seguro para todos” até 2024.
O código de conduta proposto pela ONU reconhece que a internet e as redes sociais deram espaço para vozes excluídas e temas como justiça racial e equidade de gênero, bem como apoio a comunidades afetadas por crises, mas que hoje, estão sendo cooptadas para ódio e fake news.
O estudo indica que essas mesmas plataformas estão sendo usadas para subverter a ciência, espalhar desinformação e ódio, alimentar conflitos, ameaçar democracias e prejudicar ações de saúde pública e de defesa do meio ambiente.
Para o secretário-geral, hoje estes espaços virtuais — já ocupados por 5,3 bilhões de pessoas — são frequentemente vistos como “fonte de medo e não de esperança”. Por isso, lidar com a questão é inadiável:
“Plataformas digitais estão sendo usadas para subverter a ciência e espalhar desinformação e ódio para bilhões de pessoas. (…) A proliferação do ódio e das mentiras no espaço digital está causando sérios problemas globais.”
O tema é bandeira recorrente de diversos discursos de Guterres. Em debates anteriores, ele já chegou a afirmar que a comunicação eficiente — impactada pelos males das redes — é questão de vida ou morte, e “a diferença entre paz e guerra”.
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ONU critica modelos de negócio de redes sociais
No anúncio do código de conduta, o secretário-geral da ONU destacou que o modelo de negócio atual das plataformas digitais precisa ser revisto urgentemente, uma vez que ele é peça chave no ecossistema de fake news e de discurso de ódio na internet.
O documento propõe que empresas de tecnologia abram mão de modelos de negócio que priorizam engajamento “acima de direitos humanos, segurança e privacidade”. Guterres defende:
“Desinformação e ódio não devem gerar exposição máxima e lucros em massa.”
Para ele, estas empresas “fizeram pouco” e “agiram tarde demais” ao responder à estas questões ao redor do mundo, permitindo mais ou menos desinformação de acordo com a linguagem.
A proposta também sugere que os anunciantes — parte fundamental dos modelos de negócio digitais — sejam responsabilizados pelo impacto de seus investimentos.
Questionado sobre a aceitação das plataformas, Guterrez diz que o documento serve de salvaguarda para que regulamentações não se tornem obsoletas, uma vez que o código de conduta passará a orientar as ações de todos em questão.
O assunto ecoa preocupações recentes de outras instituições, como o Departamento de Saúde dos Estados Unidos e até mesmo o Vaticano — que chegaram a publicar manifestos e documentos pedindo por mudanças no mesmo sentido.
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Código da ONU acende alertas sobre IAs e fake news
O chefe da ONU também considera que parte da responsabilidade de todas as empresas é a garantia de que inteligências artificiais cumpram com “obrigações de direitos humanos” — evitando que sejam usadas, por exemplo, para fake news, segundo o código de conduta.
Guterrez ressaltou que os próprios cientistas e especialistas que trabalham no setor reconhecem a ameaça potencial para humanidade, e que “esses alertas devem ser levados a sério”.
O assunto tem se tornado preocupação de autoridades mundiais, uma vez que os próprios desenvolvedores destas ferramentas, como o CEO da OpenAI, temem que algoritmos generativos causem danos irreversíveis.
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Questionado se concordava o pedido de “pausa” no setor capitaneado por uma carta aberta de empresários e cientistas, o chefe da ONU disse que pode ser uma “ideia interessante.”
O código de conduta apresenta questões que tocam no assunto, informando sobre a necessidade de um movimento conjunto para evitar consequências negativas.
Porém, Guterres acredita que isso não deve roubar as atenções de questões mais imediatas:
“O surgimento das IAs generativas não deve nos distrair dos danos que as plataformas digitais já estão causando em nosso mundo.”
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Código da ONU defende imprensa livre
Por fim, um dos pontos principais do código de conduta da ONU é que, além da criação de uma internet mais segura e livre de fake news, os pactuantes também forneçam “fortes proteções para jornalistas”.
A proposta de Guterres reforça que governos e agentes responsáveis devem garantir a existência de uma imprensa “livre, plural e independente”, preservando a liberdade de expressão e informação.
O relatório também condena governos autoritários que decidem por criar blecautes e banimentos da internet sem justificativa legal.
O código de conduta da ONU contra fake news e em prol de uma internet segura pode ser baixado na íntegra aqui.
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