O Vaticano publicou esta semana um guia de “mandamentos” para que cristãos reflitam sobre seus comportamentos nas redes sociais  e adotem práticas para evitar o que chama de “ciladas digitais”, como isolamento em bolhas de filtro e propagação de discursos de ódio 

A inspiração para os conselhos é apoiada em conceitos da religião e passagens bíblicas como a parábola do Bom Samaritano do Novo Testamento, que ensina os cristãos a amarem o próximo como amam a si mesmos e a abrirem espaço para a perspectiva “do outro”. 

Com o título “Rumo à presença plena: Uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais”, o documento da igreja católica também critica as plataformas digitais por algoritmos que criam isolamento e pela mercantilização.

Guia para cristãos compara redes sociais à “Terra Prometida”

A Igreja Católica tem conhecimento de causa sobre redes sociais. O perfil do Papa Francisco no Twitter é ativo, com até cinco postagens diárias, e 18 milhões de seguidores.

O texto é assinado por Paulo Ruffini, prefeito da Cidade do Vaticano. O território é um Estado Independente.

Ele explica que o documento foi resultado de uma reflexão que envolveu especialistas, professores, jovens profissionais, leigos, clérigos e religiosos. 

Ruffini salienta que a ideia do guia não é impor diretrizes formais aos cristãos, mas sim promover uma reflexão que leve indivíduos e comunidades a usarem as redes sociais de forma construtiva. 

O documento associa as redes sociais à ideia cristã de uma “terra prometida”, de partilha com base na transparência, confiança e experiência:

“Na verdade, quando começaram a utilizar a Internet há poucas décadas, as pessoas já compartilhavam uma versão deste sonho: a esperança de que o mundo digital seria um feliz espaço de compreensão comum, informações gratuitas e colaboração.”

Porém, o documento assinala que essas expectativas “não foram realmente atendidas” pelas redes sociais. E aponta o que chama de “ciladas a evitar” na “estrada digital”: 

 

 

  • Desigualdade de acesso ao mundo digital, deixando um grande número de marginalizados e excluídos. O Vaticano critica as plataformas, “que prometem criar comunidades e aproximar o mundo, mas ao contrário, tornaram mais profundas várias formas de divisão”.
  • Plataformas interessadas na relação de consumo, vendo seus usuários como “produtos” que aceitam os termos de acordo muitas vezes não compreendendo-os, e têm seus dados vendidos em troca do serviço supostamente gratuito
  • Desinformação e discurso de ódio propagados pelos algoritmos, criando ‘bolhas de filtro’
  • Agrupamento de pessoas “iguais”, impedindo que os usuários realmente se encontrem com o “outro”, diferente dele. 

Novamente a história do Bom Samaritano é citada: 

Só podemos ver o que acontece se olharmos do ponto de vista do homem ferido na parábola do Bom Samaritano.

Como na parábola, onde somos informados a respeito do que o homem ferido viu, a perspectiva dos marginalizados e feridos digitalmente ajuda-nos a compreender melhor o mundo de hoje, cada vez mais complexo.

Para evitar as ciladas, o Vaticano pergunta aos cristãos “como fazer o ecossistema digital um lugar de partilha, colaboração e pertencimento, baseado em confiança mútua?”

A resposta, segundo o texto, está na construção de uma cultura de amor ao próximo tanto no espaço virtual quanto na vida real.

Ser um ‘Bom Samaritano’ nas redes sociais  

Veja alguns conselhos do guia do Vaticano para cristãos nas redes sociais: 

Aceitar ‘o outro’ nas redes sociais 

Ser o ‘próximo’ nas redes sociais significa ter disposição para ouvir sabendo que há pessoas de verdade, do outro lado do mundo digital. E que mais do que conexões, devemos construir “relações reais”.

Segundo o documento, é essencial a criação de um encontro autêntico, reconhecendo a pessoa do outro lado como o ‘próximo’, ouvindo seus pontos com disposição e abertura, e lembrar que o sofrimento do outro muitas vezes afeta a todos.

Construção de um espaço mais saudável

O texto também aponta que ser o “Bom Samaritano” é tentar ser o primeiro passo na cura de feridas que surgiram de uma cultura digital tóxica, criando espaços digitais mais saudáveis e humanos.

Outra forma de construir essa mudança é usar espaços digitais para “chamar mais atenção” aos problemas de outras realidades e “construir a solidariedade entre aqueles que estão próximos e distantes”.

Abundância de informações roubando atenção

O guia do Vaticano alerta para o excesso de informações e de interações sociais proporcionado pelas redes sociais. E propõe atenção para a necessidade de silêncio: 

“Sem o silêncio e o espaço para pensar lenta, profunda e objetivamente, corremos o risco de perder não só as capacidades cognitivas, mas também a profundidade de nossas interações, tanto humanas como divinas.

O espaço para a escuta, a atenção e o discernimento deliberados da verdade torna-se raro”.

Evitar discussões e polarizações

O guia também aponta que cristãos deveriam agir de maneira “reflexiva, não reativa” nas redes sociais, e evitar ao máximo cair em conteúdos intencionalmente concebidos para criar conflito entre usuários:

“Devemos estar atentos à postagem e à partilha de conteúdos que possam causar mal-entendidos, exacerbar divisões, provocar conflitos e aprofundar preconceitos.”

Ele recomenda ainda que todos — especialmente lideranças da igreja — não devem e sengajar ou promover conteúdos e comunicações que causem inflamação e discórdia, e que diante de cenários como este, “o melhor procedimento é não reagir, ou reagir com o silêncio, para não dignificar esta falsa dinâmica.”

Ser testemunha de Deus no mundo digital

O guia aponta ainda que uma das maiores formas de ser “testemunha de Deus” na internet é que cristãos e não cristãos compartilhem iniciativas de cuidado e transformação — no que consideram exemplos de “proximidade digital”.

“Pessoas muito diferentes entre si podem participar de um “diálogo de ação social” online. Podem ser inspiradas pela fé ou não.

De qualquer maneira, as comunidades que são formadas para agir a favor do bem dos outros são essenciais para superar o isolamento nas redes sociais.”

Como exemplo, o Vaticano aponta grupos digitais que se reúnem para apoiar outras pessoas em tempos de doença, perda e luto, bem como comunidades que promovem crowdfunding a favor de alguém em necessidade.

A caminho de Jericó: redes como oportunidades para encontros 

O Vaticano recomenda que as redes sociais sejam vistas como um “caminho para Jericó”, citando  a passagem da Bíblia em que Jesus Cristo encontra “um mendigo cego que grita alto à margem da estrada, um cobrador de impostos desonesto, escondido nos galhos de uma figueira e um homem ferido, abandonado meio-morto pelos ladrões”.

Mas alerta para o risco de encontrar nas redes sociais muitos perfis ou contas que proclamam um conteúdo religioso, mas não participam em dinâmicas relacionais de modo fiel.

“Interações hostis, bem como palavras violentas e ofensivas, especialmente no contexto da partilha de um conteúdo cristão, gritam da tela e representam uma contradição do próprio Evangelho”.

Mais uma vez parábola do Bom Samaritano é evocada como reflexão para os cristãos nas redes sociais: 

“Todos nós podemos ser viajantes nas rodovias digitais – simplesmente “conectados” – ou podemos fazer algo como o samaritano, permitindo que as conexões evoluam em verdadeiros encontros.

O viajante casual torna-se próximo quando cuida do homem ferido, tratando suas chagas. Cuidando do homem, tenciona sarar não apenas as feridas físicas, mas igualmente as divisões e a animosidade existentes entre seus grupos sociais.”

O texto completo, publicado originalmente em inglês, pode ser visto aqui, com uma versão em português.