Londres – Dois casos separados esta semana confirmaram que o assédio sexual e moral a mulheres jornalistas continua sendo um problema até em uma nação que ocupa o 26º lugar no ranking de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras.
Mas diferentemente de tantas outras histórias, essas duas resultaram em reconhecimento de erros, pedidos de desculpas, ‘castigos’ e exposição pública dos autores de atos ocorridos na Câmara dos Lordes e na redação do the Guardian, um dos principais jornais do país.
As protagonistas foram a jornalista Poonam Joshi, correspondente da rede indiana ABP TV em Londres, e a britânica Lucy Siegle, ex-profissional do The Guardian.
Joshi x Câmara dos Lordes
Joshi encarou uma briga com uma das instituições mais “sagradas” do país, a Câmara dos Lordes – e ganhou.
Vítima de uma campanha difamatória por parte do Lord Rami Ranger, um integrante da casa que ostenta o título de Barão, ela conseguiu que uma comissão de inquérito o considerasse culpado de intimidação, bullying e assédio online.
Indignado com perguntas e reportagens da jornalista relativas às suas atividades no Fórum Hindu da Grã-Bretanha, o rico e poderoso foi obrigado a pedir desculpas públicas.
Ele terá que fazer um curso de bom comportamento nas redes sociais, além de enfrentar a condenação pública que pode custar mais caro do que uma pesada multa a um homem público que transita no mundo dos negócios e da influência.
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Assédio sexual a mulheres jornalistas dentro da redação
A outra vitória é de mulheres jornalistas que sofreram assédio sexual dentro da redação de um dos jornais mais importantes e respeitados do mundo, o The Guardian.
Na segunda-feira (12), o Guardian Group anunciou uma revisão em seu processo de tratamento de denúncias de má conduta, em resposta a atos praticados por Nick Cohen, ex-colunista de sua edição dominical, o The Observer.
Uma das vítimas foi a jornalista Lucy Siegle, que recebeu um email da editora-chefe do Guardian, Katharine Viner, e da CEO, Anna Bateson, pedindo desculpas pela experiência de assédio sexual vivida por ela e pela forma como a reclamação foi tratada internamente.
O problema é que o email chegou com cinco anos de atraso. Em 2018, ela comunicou à chefia que Cohen havia colocado a mão em seu traseiro. Queixas semelhantes foram apresentadas por pelo menos sete outras jornalistas.
Siegle afirmou que um editor sênior defendeu Cohen e o jornal nada fez – situação que não é incomum em empresas, incluindo jornalísticas.
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Um investigação formal só começou em 2021, quando a jornalista tornou o caso público pelo Twitter. Mas não deu em nada.
Apenas em 2023 Cohen perdeu o cargo, supostamente com um acordo de confidencialidade e uma indenização. Publicamente, o jornal atribuiu a saída a motivos de saúde e elogiou seu trabalho brilhante – mas não para as colegas de redação.
Para piorar a situação do Guardian, dirigido por duas mulheres, a decisão de rever os procedimentos e pedir desculpas só foi tomada depois de uma reportagem publicada pelo New York Times em 30 de maio – que respingou até no Financial Times, também dirigido por uma mulher.
Segundo a reportagem da jornalista investigativa Jane Bradley, a repórter do FT Madison Marriage tinha a notícia de que Nick Cohen havia deixado o Guardian em janeiro por assédio sexual, e fontes dispostas a falar para a reportagem.
Mas diversos jornalistas da redação confirmaram que a editora-chefe, Roula Khalaf, engavetou a matéria sob o argumento de que não era um assunto de negócios com o perfil do Financial Times.
Curiosamente, a mesma Marriage foi a autora de uma premiada reportagem publicada pelo FT em 2018 sobre abusos a jovens recepcionistas em um tradicional jantar de gala do empresariado britânico , indicando que assédio não é exatamente distante da agenda do jornal.
Quem acabou fazendo a reportagem foi o New York Times. Lucy Siegle foi uma das entrevistadas.
Huge thank you to everyone who took the time to read, understand and often contact me after reading @jane__bradley’s piece on our story of trying to report a prolific sexual abuser in British media. It didn’t get the airtime it should’ve but it has been a catalyst for change. pic.twitter.com/Xxlxj8Dav2
— lucy siegle (@lucysiegle) June 11, 2023
O NYT relatou que a fama de apalpador do colunista era tão conhecida que as jornalistas usavam uma entrada diferente para um bar a fim de evitar cruzar com o colega.
Nesta segunda-feira (12), Siegle falou novamente ao jornal após receber o pedido de desculpas e as informações sobre as mudanças no procedimento, dizendo-se “aliviada” e feliz por ter impulsionado mudanças.
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Denúncias de assédio serão analisadas por terceiros
O Guardian informou que reclamações de assédio serão analisadas por terceiros, e não por integrantes da redação – chefes cujas relações pessoais e profissionais com os envolvidos nos casos podem influenciar suas decisões.
E ainda pode vir mais pela frente. Uma consultoria especializada em cultura corporativa foi contratada pelo Guardian para atuar até setembro como um “ponto de contato independente”, conversando com profissionais que desejem relatar outros casos.
O ex-colunista Nick Cohen não respondeu a acusações específicas, mas sugeriu que os atos foram praticados quando era alcoólatra.
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Poonam Joshi encoraja mulheres a ‘defender o que é certo’
Enquanto no Guardian a resposta demorou cinco anos, na Câmara dos Lordes levou pouco mais de seis meses.
Mas os dois casos tem algo em comum: a coragem de jornalistas mulheres em denunciar e se expor, correndo o risco de mais assédio.
A indiana Poonam Joshi. que também é ativista na área de direitos das mulheres, abriu uma reclamação no Comitê de Ética da casa em novembro, anexando um assustador conjunto de tweets agressivos e discriminatórios.
Ela foi chamada de “pobre” e insignificante por Lord Ranger, como forma de intimidação.
Em reação às críticas, ele sugeriu que ela não teve boa educação familiar, e tachou-a de “presstitute”, xingamento usado na Índia contra mulheres jornalistas por membros do partido de Narendra Modi.
Em entrevista ao MediaTalks, Joshi encorajou outras mulheres a lutarem contra ataques e injustiças:
“Venho de uma cultura e de um país onde o patriarcado está arraigado, onde as mulheres têm que trabalhar duplamente para serem ouvidas e progredirem na sociedade.
Não importa o status e a posição que alcancemos, ainda somos frequentemente vistas como “irrelevantes”, cujas opiniões e pontos de vista não importam e somos constantemente silenciadas.
É especialmente difícil para uma jornalista porque muitas vezes é nosso trabalho responsabilizar homens poderosos. Precisamos perceber e entender nossa força interior e ter fé de que, enquanto estivermos defendendo o que é certo e o que é justo, não há nada a temer.”
Segundo uma pesquisa da Federação Internacional de Jornalistas, 60% das mulheres jornalistas já enfrentaram assédio online relacionado ao seu trabalho. O Brasil tem vários exemplos, como Patrícia Campos Melo, da Folha de S.Paulo.
Muitos desses casos se transformam em ameaças offline e envolvem também familiares.
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