Londres – A Suprema Corte da Austrália condenou  o ex-advogado militar e denunciante David McBride a 68 meses de prisão, por vazar informações militares confidenciais para a rede pública de mídia Australian Broadcasting Corporation (ABC).

Os documentos entregues à rede por McBride, de 60 anos, foram a base de uma série de reportagens chamada “The Afghan Files”. Elas detalhavam alegações de crimes de guerra cometidos por soldados australianos no Afeganistão.

Na sentença proferida terça-feira (14), o juiz David Mossop destacou a “evidente falta de remorso” de McBride e sua forte crença no bem social das suas ações, afirmando ser “improvável que pudesse ser reabilitado”. Ele terá que cumprir pelo menos dois anos e sete meses na cadeia, sem liberdade condicional. 

A decisão foi recebida com indignação por organizações de direitos humanos e de liberdade de imprensa

A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) e a Media, Entertainment and Arts Alliance (MEAA) da Austrália condenaram a sentença pelo seu “impacto alarmante” no jornalismo de interesse público, destacando a necessidade urgente de uma reforma de mecanismos de proteção a denunciantes que entregam informações sólidas à imprensa. 

A condenação aconteceu na semana anterior à audiência final do caso Julian Assange, australiano preso há seis anos em Londres pela publicação de informações confidenciais sobre a atuação de soldados americanos nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Os EUA tentam extraditá-lo para que responda a 18 processos em solo americano. 

McBride é um dos australianos que defende a libertação de Assange e a seu retorno para a Austrália em vez de ser extraditado. O governo australiano fez o pedido oficialmente aos EUA e ao Reino Unido, e a decisão será tomada na audiência marcada para 20 de maio em Londres. 

Quem é o advogado condenado como denunciante na Austrália 

Ex-integrante do Exército Australiano, David McBride é advogado formado em Oxford e serviu como oficial jurídico nas Forças de Defesa da Austrália (ADF). Ele fez viagens ao Afeganistão em 2011 e 2013, e disse ter ficado chocado com a atuação de seus membros, afirmando que “uma linha havia sido ultrapassada” pelos comandantes.

Depois das viagens, o advogado desenvolveu estresse pós-traumático, passou a consumir drogas e álcool e disse ter ficado convencido de que precisava falar. 

Ele reuniu em 2014 arquivos militares confidenciais detalhando a atividade das forças armadas australianas no Afeganistão de 2009 a 2013, armazenados nos computadores do quartel-general de alta segurança do Comando de Operações Conjuntas. O dossiê foi apresentado internamente aos superiores, à polícia e ao Ministério da Defesa, mas nenhuma ação foi adotada.  

Em 2017, o denunciante entregou então os documentos confidenciais à rede ABC, resultando em ampla cobertura da mídia e um debate nacional sobre a conduta das forças militares australianas.

Ele argumentou que tomou essa decisão porque acreditava que as questões levantadas pelos documentos não estavam sendo tratadas adequadamente pelos canais internos e que a divulgação era necessária para promover a responsabilidade e a justiça.

Após ser identificado como o denunciante do caso, o advogado deixou a Austrália rumo à Espanha, onde permaneceu escondido por um ano. A Polícia Federal australiana fez buscas em sua casa e encontrou os documentos que deram origem à reportagem. 

Batida policial na sede da TV pública da Austrália 

A rede ABC também foi visada, com uma batida policial em sua sede, em Sydney, em 2017. Os alvos eram o jornalista Dan Oakes, que assinou as reportagens, e o produtor Sam Clarke. 

A divulgação dos fatos relatados pelo advogado denunciante deram origem a um inquérito que encontrou provas de assassinatos ilegais de civis e prisioneiros por parte de integrantes das Forças Especiais da Austrália. No entanto, isso não foi suficiente para o governo retirar as acusações contra quem os revelou. 

Como consequência de suas ações, McBride enfrentou acusações criminais sob a Lei de Crimes de Defesa e outras leis relacionadas à segurança nacional e ao manejo de informações confidenciais. Ele foi acusado de roubo de propriedade comum, destruição de propriedade comum e divulgação não autorizada de informações.

Durante o processo, o advogado se declarou culpado de algumas das acusações relacionadas à divulgação de informações confidenciais, mas continuou sustentando que suas ações foram realizadas no interesse público, visando expor má conduta e promover a justiça.

Caso na Austrália expõe falta de proteção a informantes da imprensa 

O caso de David McBride expôs a fragilidade da proteção de denunciantes e a falta de transparência em operações militares. Muitos defensores de direitos humanos e organizações de liberdade de imprensa expressaram apoio a ele, concordando que suas ações foram motivadas por um desejo de justiça e responsabilidade.

A Anistia Internacional é uma das que sempre defendeu McBride, argumentando que informantes como ele desempenham um papel crucial na exposição de violações de direitos humanos e na promoção da transparência e da responsabilidade governamental.

A organização afirmou que a perseguição ao advogado envia uma mensagem negativa para outros possíveis denunciantes, desencorajando relatos de má conduta.

Após a condenação, a Federação Internacional de Jornalistas criticou fortemente a Austrália, que ao mesmo tempo defende a retirada de acusações contra Julian Assange. 

“A sentença de David McBride é contrária aos compromissos da Austrália com a democracia, a responsabilização e a liberdade de imprensa, demonstrando uma necessidade crítica de uma reforma na proteção dos denunciantes.

O jornalismo de interesse público, como o The Afghan Files, desempenha um papel vital na responsabilização daqueles que estão no poder, e deve ser obrigação das autoridades garantir que aqueles que divulgam informações aos jornalistas sejam protegidos.”

Após a audiência, o advogado foi levado para a custódia policial. 

A Austrália caiu de 27º para 39º no Global Press Freedom Index 2024, ranking elaborado anualmente pela Organização Repórteres Sem Fronteiras refletindo a situação da liberdade de imprensa em 180 nações.