Por Luciana Gurgel | MediaTalks Londres 

Coluna publicada originalmente no J&Cia e Portal dos Jornalistas em 24/09/2020


O flagelo da desinformaรงรฃo propagada via redes sociais e aplicativos de mensagem, que se agigantou na pandemia, tem sido debatido extensivamente em todo o mundo. Na live de lanรงamento do MediaTalks, Fernando Rodrigues, diretor de Redaรงรฃo do Poder360, apontou que o principal legado da Covid-19 foi ter acelerado o debate sobre as fake news.

A mรก notรญcia รฉ que tal visibilidade nรฃo tem sido suficiente para estancar movimentos alicerรงados em teorias conspiratรณrias capazes de mobilizar pessoas em torno de causas perigosas. O QAnon emerge como o principal deles neste momento.

No รบltimo sรกbado de verรฃo no hemisfรฉrio norte, muitos londrinos aproveitaram o dia quente โˆ’ para os padrรตes locais โˆ’ e foram relaxar ao ar livre, apesar do clima tenso devido ร  escalada da Covid-19 no paรญs. Outros preferiram protestar.

Manifestantes concentraram-se na Trafalgar Square e rumaram para o Palรกcio de Buckinghan. Nรฃo eram muitos, uns 100. Mas representam o avanรงo do movimento QAnon, que comeรงou nos Estados Unidos em 2017, a partir da rede 4Chan, e alastra-se pelo mundo.

Marchas tambรฉm ocorreram em 11 cidades inglesas importantes, como Bristol, Newcastle e Manchester. E alรฉm-mar, em Estados Unidos, Canadรก, Austrรกlia e Nova Zelรขndia.

Hope Not Hate aponta ligaรงรตes do QAnon com outros grupos radicais

A ONG britรขnica Hope Not Hate publicou um relatรณrio descrevendo como o QAnon vem ganhando corpo na esteira da Covid-19. Segundo a organizaรงรฃo, essa teoria da conspiraรงรฃo, com tendรชncias antissemitas, espalhou-se em solo americano e criou bolsรตes de apoio na Europa nos รบltimos meses.

Ela se baseia na ideia de que o โ€œo presidente Donald Trump trava uma guerra secreta contra uma conspiraรงรฃo de pedรณfilos satรขnicos poderosos, que estariam sequestrando, torturando e canibalizando crianรงas em larga escalaโ€. Os adeptos creem que, graรงas a Trump, o grande despertar estรก prรณximo, quando os responsรกveis serรฃo presos e executados. E os sobreviventes libertados.

Mais sobre o QAnon em MediaTalks

A Hope Not Hate revela que os protestos no Reino Unido sรฃo liderados pela entidade Freedom for the Children UK (FFTCUK), um dos grupos rebeldes surgidos durante o lockdown. ร… frente estรก Laura Ward, uma consultora de marketing de 36 anos, que criou o grupo – fechado –  no Facebook em julho e tem mais de 12 mil seguidores.

A linha de argumentaรงรฃo รฉ sagaz. Os grupos ligados ou inspirados na QAnon misturam no mesmo liquidificador uma causa da qual ninguรฉm discorda โˆ’ o combate ao abuso de crianรงas โˆ’ com a insubordinaรงรฃo a medidas governamentais de controle da Covid-19, adotando um posicionamento claramente ideolรณgico ao invocar liberdades individuais.

Um exemplo destacado no documento: a marcha em Manchester teve o apoio do Stand Up X (SUX), um grupo anti-5G que desde maio organizou dezenas de protestos contra o lockdown. No site deixam claro o objetivo: desafiar as medidas de controle da Covid-19, classificadas como ilegais e desproporcionais. E dizem nรฃo ร  vacina.

David Icke, notรณrio teรณrico da conspiraรงรฃo britรขnico e antissemita, sobre o qual falamos no primeiro capรญtulo da sรฉrie sobre os efeitos da pandemia no jornalismo, รฉ outro que estรก engajado. Assim como destacados ativistas antivacina.

“Embora esses grupos permaneรงam pequenos, com pouca atenรงรฃo da mรญdia, as ideias que promovem sรฃo extremas. E sรฃo vulnerรกveis โ€‹โ€‹ร  exploraรงรฃo pela extrema direitaโ€œ, diz o pesquisador David Lawrence, que assina o relatรณrio da Hope Not Hate.

QAnon ativo em solo brasileiro

A partir de uma denรบncia do jornal O Estado de S. Paulo, o Facebook removeu em agosto pรกginas ligadas ao movimento no Brasil. O Official QAnon tinha mais de 200 mil membros, segundo o Olhar Digital. O Twitter tambรฉm excluiu contas.

Mas o absurdo continua circulando. Um video no Facebook mostra uma manifestaรงรฃo de adeptos do QAnon em Copacabana em agosto, denunciando pedofilia e morte de crianรงas, com o cuidado de nรฃo mencionar palavras censuradas pela rede mundial por serem associadas ao movimento. Uma ativista fala de crianรงas mantidas em tรบneis.

Do outro lado do oceano, a mesma tese prospera. Em matรฉria sobre os protestos de sรกbado em Londres, um participante de 50 anos entrevistado pelo The Times disse igualmente acreditar na existรชncia de tรบneis com crianรงas sob a capital britรขnica.

O trabalho das organizaรงรตes de fact-checking tem sido incansรกvel e bem organizado, denunciando notรญcias falsas.

Mas pode ser pouco diante de um inimigo perigoso. O QAnon รฉ um tema que merece atenรงรฃo da imprensa, das plataformas digitais e de organizaรงรตes da sociedade civil enquanto รฉ tempo. A histรณria jรก mostrou onde movimentos radicais podem chegar.

Em entrevista ao The Observer, o presidente da ONG Genocide Watch, Gregory Stanton, alertou: โ€œA teoria conspiratรณria do QAnon รฉ copiada dos Protocolos dos Sรกbios do Siรฃo, promovidos por Hitler e pelo partido Nazista na Alemanha”. A ONG clama que o QAnon รฉ simplesmente o nazismo de roupa nova.