Ser jornalista no Brasil hoje é ser alvo de uma máquina de ódio, que atinge com mais força as mulheres. A principal arma dessa máquina são as informações falsas, base da atual tragédia de saúde vivida pelo país e a pedra angular do desastre político que se aproxima. Além da manipulação da população, a avalanche de mentiras é utilizada para deslegitimar o jornalismo profissional, que com suas matérias críticas e investigativas é uma das últimas barreiras contra esse estado de coisas.

 Essas são algumas das conclusões da palestra internacional da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, ao Instituto Reuters de Estudos do Jornalismo, no dia 8 de junho. Ela alertou para o fato de que os governos não precisam mais se utilizar da clássica censura pela supressão de notícias porque agora se utilizam da censura por ruído – uma inundação de fake news que torna difícil identificar qual das informações é verdadeira, sem precisar proibi-las.

Em meio às milícias cibernéticas e às campanhas de intimidação, Patrícia ressalta que os jornalistas não devem se posicionar como ativistas contra governos. Ela enfatiza que isso é justamente o que não deve ser feito, e que as reportagens justas e equilibradas sempre serão a resposta mais eficiente.

Depois que a máquina de ódio se voltou contra ela durante a última campanha presidencial, Patrícia teve que passar a circular por São Paulo protegida por um segurança – um cuidado que os veículos para os quais trabalhou nunca julgaram necessário, nem quando cobriu os perigosos conflitos da Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão.

Confira a seguir os principais tópicos abordados por uma das maiores jornalistas brasileiras da atualidade numa das mais prestigiosas instituições de estudos de jornalismo do mundo.

Sobre o ataque que sofreu da “máquina de ódio”:

“Sou alvo dessa máquina de ódio desde 2018, quando comecei a escrever sobre o uso político do WhatsApp e de outras ferramentas de desinformação para manipular a opinião pública.

No começo, recebia mensagens ameaçadoras no Facebook, Twitter e Instagram. Em uma dessas mensagens no Facebook, o agressor disse: “Se você quer que seu filho fique seguro, saia do país. Isso não é uma ameaça; é um aviso.” Meu filho tinha 6 anos.

Os trolls então começaram a enviar mensagens para grupos do WhatsApp de apoiadores do presidente Bolsonaro, dizendo-lhes o endereço, data e hora dos eventos dos quais eu participaria. Eles pediam aos seguidores para que fossem aos eventos e me confrontassem. Eles começaram a ligar para o meu celular. “Você é uma vadia comunista; estou indo para sua casa agora para dar um soco na sua cara”,disseram.

Reunimos as ameaças mais extremas e as enviamos à polícia. Meu jornal decidiu que eu deveria ter um guarda-costas por um tempo, só para garantir. Cobri os conflitos na Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão e nunca pensei em contratar um consultor de segurança. Eu estava em São Paulo, cobrindo as eleições, e precisava de um.

Em fevereiro do ano passado, a máquina de ódio iniciou uma campanha massiva de assédio sexual online. Circularam na internet milhares de memes em que meu rosto aparece em montagens pornográficas, me chamando de prostituta e aludindo a órgãos sexuais. Recebo mensagens de pessoas dizendo que ofereço sexo em troca de furos e que deveria ser estuprada.

Recentemente, ganhei ações judiciais por danos morais contra o presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo, por repetidamente declararem ou sugerirem que eu ofereço sexo em troca de furos. Eles estão apelando do veredito.

 

 

Eu não estou sozinha. Muitas jornalistas respeitadas no Brasil, como Míriam Leitão, Vera Magalhães, Talita Fernandes, Constança Rezende, Juliana Dal Piva e Daniela Lima também foram alvo de ataques misóginos. E em todo o mundo, grandes jornalistas como Maria Ressa nas Filipinas e Neha Dixit na Índia estão sendo atacadas com calúnias e ameaças sexistas apenas porque estão fazendo seu trabalho.”

Sobre os ataques aos jornalistas 

 “O presidente brasileiro já mandou mais de um jornalista calar a boca. Certa vez, ele disse a um repórter que tinha “a aparência terrível de um homossexual”. Há alguns meses, questionado por um repórter sobre uma investigação de corrupção, ele disse que queria “socá-lo” na boca.

Essas agressões são amplamente divulgadas nas redes sociais, como parte de uma ofensiva para retratar a mídia como inimiga do povo e inflamar a população contra os jornalistas. O mesmo está acontecendo nas Filipinas, Índia, Hungria, Turquia, Estados Unidos e em muitos outros países.

Infelizmente, funciona. Os principais meios de comunicação do Brasil não enviam mais jornalistas para cobrir as coletivas de imprensa improvisadas do presidente fora do Palácio da Alvorada porque não é seguro.

Os repórteres eram constantemente ameaçados por apoiadores do governo, que gritavam coisas como: “Ratos! Ratos! Bolsonaro até 2050! Imprensa podre! Comunistas!” Em maio passado, um fotojornalista foi empurrado, chutado e socado no estômago durante um protesto em favor do governo e o fechamento do Congresso e da Suprema Corte.

 A situação é especialmente crítica para as jornalistas. Somos alvo de campanhas de difamação estimuladas e ampliadas pelo governo. Com muito mais frequência do que nossos colegas homens, temos nossos pais e filhos intimidados, nossa aparência ridicularizada, nossos endereços e números de telefone expostos e estamos sujeitos a ameaças violentas tanto online quanto no mundo real.

Além do ataque digital, o governo recorre à Lei de Segurança Nacional para silenciar jornalistas críticos, acadêmicos, cartunistas políticos e a oposição. A Lei de Segurança Nacional é uma legislação raramente usada e um resquício da ditadura militar.

Os jornalistas também estão sob assédio judicial sistemático, sendo processados por partidários do presidente, exigindo grandes somas. Os meios de comunicação também são alvos: o próprio presidente e seus ministros pressionam as empresas para que parem de anunciar em agências de notícias críticas e na TV.”

Sobre a desinformação voltada às próximas eleições:

“Neste exato momento, milhões de brasileiros também estão obtendo grande parte de suas informações sobre a eleição presidencial do próximo ano por meio de grupos do Facebook, Telegram e WhatsApp. Eles estão lendo que as últimas eleições no Brasil teriam sido fraudadas, que teria havido fraude eleitoral generalizada, e que as urnas eletrônicas podem ser facilmente hackeadas.

Desde que o Brasil implementou o voto eletrônico em 1996, nunca houve evidência confiável de qualquer fraude significativa nas eleições. Nem uma vez. E, no entanto, o presidente Bolsonaro, seus principais aliados e blogueiros de extrema direita dizem a essas mesmas pessoas, dia após dia, que as eleições de 2022 serão fraudadas, a menos que uma emenda à Constituição seja aprovada e todas as urnas eletrônicas estejam equipadas com impressoras que garantem o rasto do papel.

Não há nada de errado em discutir maneiras de melhorar a segurança do voto. No entanto, mesmo que haja mudanças na legislação, não há tempo suficiente para adaptar todas as urnas eletrônicas até a eleição de 2022 e o presidente tem afirmado repetidamente que a única razão pela qual perderá é por causa da fraude no voto eletrônico. Ele está questionando preventivamente os resultados, para o caso de perder.

Nós sabemos aonde tudo isso leva. Nos Estados Unidos, após uma campanha massiva de desinformação liderada por Donald Trump, seus apoiadores invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021 para confrontar legisladores e protestar contra os resultados. Cinco pessoas foram mortas. De acordo com pesquisas recentes, 60% dos eleitores republicanos acreditam que houve uma fraude generalizada e Joe Biden não é o presidente legítimo – embora dezenas de decisões judiciais tenham declarado o contrário.

 

Hoje os EUA são um país fragmentado. Mas conseguiu sobreviver a um ataque massivo contra suas instituições.

Não tenho certeza se uma jovem democracia como o Brasil será capaz de resistir a esses ataques massivos contra sua integridade eleitoral e instituições democráticas. As mentiras são a base da tragédia de saúde pela qual estamos passando e as mentiras são a pedra angular do nosso desastre político que se aproxima.

Neste exato momento, milhões de brasileiros estão obtendo grande parte de suas informações sobre a Covido-19 por meio do Facebook, Telegram, YouTube e WhatsApp. Eles estão aprendendo a curar e prevenir essa doença mortal com hidroxicloroquina, vitaminas e ivermectina, um medicamento que combate os piolhos. Como a ciência mostrou, nada disso funciona.

O presidente Bolsonaro e seus principais aliados dizem a essas mesmas pessoas, todos os dias, que não há necessidade de distanciamento social ou de máscaras, que as pessoas deveriam tomar esses remédios milagrosos, parar de choramingar e voltar ao trabalho. Afinal, seu raciocínio é, “se a economia afundar, meu governo afundará”.

Nós sabemos onde tudo isso leva. Mais de 470 mil pessoas morreram de COVID-19 no Brasil, o segundo maior número de mortes no mundo, depois dos Estados Unidos. E não, o Brasil não é o segundo país mais populoso do mundo – é o sexto.” 

 Sobre o jornalismo como barreira contra o colapso da democracia:

“O jornalismo profissional é uma das últimas barreiras ao colapso da democracia no Brasil e em muitos outros países que lutam com uma avalanche de mentiras. Informações meticulosamente verificadas, relatórios cuidadosos e equilibrados e investigações aprofundadas são a única esperança de trazer de volta a realidade a muitos países onde os fatos se tornaram maleáveis e muitas vezes secundários às opiniões e crenças.

 É por isso que jornalistas e meios de comunicação estão sob ataque em tantos países. Atacar a mídia profissional e desacreditar jornalistas faz parte da estratégia dos líderes populistas de estabelecer um canal direto com os apoiadores, sem checagem de fatos, sem questionamento, sem responsabilização. Com a ajuda de redes sociais e mídias tradicionais flexíveis, esses líderes estão tentando contornar o filtro do jornalismo crítico e independente.

A censura, neste novo mundo, não exige mais a supressão de informações. Por um lado, os líderes populistas inundam as redes sociais, os aplicativos de mensagens e a Internet em geral com a versão dos fatos que desejam prevalecer – de forma que afogam as investigações e as notícias negativas. É a chamada censura por ruído.

Então, para que a manipulação da opinião pública tenha sucesso, esses líderes populistas digitais precisam deslegitimar o jornalismo profissional. Para neutralizar o jornalismo, os líderes implantam milícias virtuais que realizam campanhas de assassinato de caráter e difamação contra jornalistas e meios de comunicação que mantêm o governo sob controle. É uma nova forma de censura, terceirizada para trolls, blogueiros e influenciadores, ampliada por bots e ciborgues no Twitter, Facebook, Instagram, WhatsApp, Telegram, YouTube e TikTok – e adotada por pessoas reais, ansiosas para ver suas crenças validadas.

Essas agressões não têm nada a ver com críticas justas e bem-vindas. Os jornalistas cometem erros e devemos corrigi-los e ser responsáveis por eles. Nem é a animosidade tradicional entre governos e os que buscam fiscalizá-los.”

Sobre as matérias justas e equilibradas como a melhor resposta:

“Em meio a essas campanhas de intimidação, é tentador para nós, jornalistas, ver o governo como o inimigo. Mas isso é precisamente o que não devemos fazer. Devemos combater a intimidação com nossa melhor arma – reportagens justas e equilibradas.

A pandemia e a ascensão de líderes autoritários em todo o mundo mostraram que o jornalismo é necessário. No meio de um desastre de saúde e uma avalanche de desinformação, informações precisas são preciosas.

Os repórteres são os que vão aos hospitais para mostrar como está a situação. Somos nós que estamos revelando que as UTIs estão ficando sem oxigênio e analgésicos necessários para intubar os pacientes. Obtivemos telegramas diplomáticos mostrando como o governo mobilizou sua estrutura para importar medicamentos não comprovados contra COVID-19 e vacinas negligenciadas.

Jornalistas estão analisando orçamentos e expondo como o governo está cortando verbas para combater o desmatamento e tolerando operações massivas de extração ilegal de madeira enquanto diz ao mundo que está defendendo a Amazônia.

Os verificadores de fatos são aqueles que verificam as afirmações que podem levar as pessoas a comportamentos perigosos em relação à sua saúde ou democracia. Quem mais vai fazer isso? Não escritores de opinião, blogueiros partidários, ativistas, influenciadores digitais ou funcionários do governo.

Não podemos contar com os donos das plataformas de internet para evitar que a desinformação crie ou exacerbe crises políticas e de saúde. Vimos como eles impõem suas próprias regras arbitrariamente.

 Jornalistas profissionais são aqueles que são capazes de descobrir a verdade e divulgá-la. Não será fácil, pois enfrentamos uma concorrência desleal. A desinformação torna-se viral, mas a informação exata, não.”

Ainda assim, temos uma oportunidade inestimável de provar a relevância do jornalismo em um mundo de mentiras. Como podemos fazer isso?

“Não devemos misturar jornalismo com ativismo. Não podemos tomar partido, mesmo quando o que vemos é ultrajante e está causando um grande número de mortes evitáveis.Mas não devemos. Não é necessário dizer às pessoas como nos sentimos ou o que elas deveriam pensar. Simplesmente mostrar evidências, expor as informações ocultas, encontrar documentos originais e chegar às fontes primárias, investigando cuidadosamente para não cometer erros e para corrigir erros – isso é o melhor que podemos fazer para divulgar informações de qualidade.”

Leia também 
 
 
 
 
 
 

Pulitzer 2021 | Poderoso New York Times e jovem que filmou Floyd são os destaques do ano