A situação da imprensa no Afeganistão é dramática, com veículos independentes fechados pelo Talibã e jornalistas perseguidos e até assassinados. Mais sorte tiveram os que conseguiram deixar o país nos voos de resgate, mas não é fácil deixar tudo para trás.
Um dos relatos mais pungentes foi o da jornalista Farida Nekzad, editora-chefe da Pajhwok Afghan News, a maior agência de notícias independente do Afeganistão. Ela é vencedora do prêmio International Women’s Media Foundation “Coragem no Jornalismo” em 2008 e diretora do Centro para a Proteção de Jornalistas Mulheres Afegãs (CPAWJ).
Em depoimento à Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) após chegar ao Catar, onde se refugiou provisoriamente com a família ela contou como foram as horas que se passaram entre o confinamento em uma capital em estado de guerra, a jornada até o aeroporto e a espera até poder embarcar, no dia 24/8.
Neste vídeo, gravado por um repórter do jornal alemão Bild, ela afirma que o Talibã não tem limites nem respeita nada, e por isso jornalistas estão em perigo, sobretudo as mulheres, depois que foram instadas a ficar em casa. Ela falou do perigo de deixar o país e que chegou a ser perseguida. Mas lamenta que as que ainda estão lá vivem sob ameaça.
We met Farida in Doha who worked as journalist in Afghanistan, helped many other women reporter and fled four days ago. Watch what she has to say! pic.twitter.com/li4d10D5ya
— Paul Ronzheimer (@ronzheimer) August 28, 2021
Leia o relato da jornalista sobre como foi o voo de partida e sobre o futuro de quem teve que se exilar:
“Quando fugi de Cabul, estava entre pelo menos 15 outros profissionais da mídia no avião. Havia jornalistas famosos da Zen TV, Ariana News, Khalid, Tolo News [redes nacionais do país] e alguns outros funcionários da mídia regional.
Alguns eram jornalistas experientes que trabalharam por muito tempo no Afeganistão, mas infelizmente não tiveram outra escolha a não ser ir embora.
A situação era realmente horrível. Um grande problema era que, embora a maioria dos jornalistas tivesse recebido uma carta de saída, nada estava claro sobre o processo de evacuação: não havia um sistema claro de transporte, nenhum local, nenhum ponto focal onde devíamos nos encontrar para chegar ao aeroporto.
Tive a sorte de ter um carro providenciado pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas para ir do Hotel Serena em Cabul até o aeroporto. Havia uma lista com nomes de pessoas que poderiam deixar o hotel. Assim que chegamos ao aeroporto, eles checaram os nomes na lista antes de nos deixarem entrar.
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Uma vez no aeroporto, o local estava lotado por toda parte. De um lado, civis com documentos e passaportes tentavam correr para entrar no aeroporto e, do outro lado, membros do Talibã atirando, às vezes no ar, mas às vezes também cara a cara. Várias pessoas ficaram feridas.
Depois de esperar por 8-9 horas, finalmente tivemos a chance de entrar no avião. Todos no avião choravam, inclusive eu. Chorei desde o momento em que entrei no hotel até entrar no aeroporto do Catar. Não é algo fácil, deixar sua terra natal.
Lutamos por 20 anos pela democracia, liberdade de imprensa, mídia livre e presença de mulheres jornalistas. Todo esse progresso e sacrifício foram retirados em um minuto e agora estamos 20 anos de volta à ignorância e ao período sombrio do Talibã.
Não sei o que me espera no futuro. No avião, três mulheres da Ariana News também estavam tristes e muito confusas sobre o que deveríamos fazer: morar no Catar ou em um terceiro país? Fazer carreira de novo? É uma perda de tempo?
Esperamos que a comunidade internacional preste atenção a esses jovens, bem como aos idosos e especialistas afegãos, e os ajude a retomar suas atividades.”
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Uma jornalista corajosa
Nekzad começou a se interessar por jornalismo quando era adolescente, enquanto assistia a entrevistas com autoridades afegãs na televisão. Mas quando o Talibã assumiu o controle do país, em 1996, foi forçada a se retirar da Universidade de Cabul para se refugiar no Paquistão, onde permaneceu no exílio por cinco anos, no período em que a situação da imprensa no Afeganistão se tornou mais crítica.
Ao retornar, no final de 2001, Nekzad trabalhou como produtora e editora para vários meios de comunicação e também se tornou uma treinadora de jornalistas. Em sua carreira ele já cobriu política, questões econômicas e sociais, direitos das mulheres e a reconstrução de Afeganistão.
A jornalista recebeu várias ameaças, mas não deixou que interferissem em suas reportagens. E sempre disse que queria ficar no Afeganistão para promover os direitos das mulheres e aumentar a presença das mulheres na sociedade. Nekzad, que é vice-presidente da Comissão de Mídia do Sul da Ásia, também se empenhou em apoiar mulheres jornalistas e incentivar mais mulheres a se tornarem jornalistas.
Em 2008, quando recebeu o prêmio Coragem no Jornalismo, ela disse:
“Acima de tudo, nós nos esforçamos para dizer ao mundo o que está acontecendo com as mulheres no Afeganistão, mesmo que algumas de nós tenhamos que sacrificar nossas vidas. […] Quero provar que nós – jornalistas – podemos trabalhar ombro a ombro com nossos irmãos e, ao mesmo tempo, permanecer firmes em nossa profissão. “
A partida de Cabul colocou um fim ao sonho, pelo menos por enquanto.
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