Seria possível o Twitter abandonar os trending topics em nome da ética, contra a desinformação? Essa proposta vem de uma pesquisa que identificou como influenciadores-mercenários digitais são pagos para criar falsas tendências na rede social, financiados por fontes obscuras.

Apesar da origem não identificada, os motivos são claramente políticos, mostra o relatório Por Dentro do Mundo Sombrio da Desinformação à Venda no Quênia, em tradução livre, produzido pela Mozilla Foundation no país africano, mas que joga luz em uma prática muito possível de ocorrer em escala global.

Entrevistando alguns destes mercenários, e identificando correntes de posts coordenados em engajamentos falsos, o trabalho de investigação mostra como não é difícil manipular os trendings topics e fazer parecer que uma determinada opinião é popular, ou está “bombando” nas redes.

“É como pagar muitas pessoas para que elas lotem um comício político”, exemplifica o estudo. Os pesquisadores sugerem que a rede social abandone o formato das trending topics, ao menos em períodos críticos como eleições, uma vez que o Twitter estaria servindo de amplificador de campanhas arquitetadas para manipular a rede social. 

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No caso pesquisado, mercenários digitais foram pagos cerca de R$ 45 por dia para espalharem hashtags contra o sistema judiciário no Quênia, que derrubou uma robusta emenda constitucional que interessava o Poder Executivo, o BBI (Building Bridges Iniciative), que entre outras coisas criaria um posto de primeiro-ministro.

Críticos afirmam que as mudanças na Constituição, promulgada em 2010, serviriam para aumentar o poder das elites e do próprio presidente, Uhuru Kenyatta.

Segundo o estudo da Mozilla Foundation, o foco principal das campanhas, segundo os influenciadores contratados que revelaram o esquema, era chegar aos trending topics do Twitter, considerado rede social essencial para influenciar o debate político no Quênia.

Em grupos de WhatsApp, os mercenários digitais recebem informações detalhadas sobre o que devem postar, incluindo memes e charges críticas a ministros do Supremo queniano. Os pagamentos são por vezes adiantados, pois segundo relatam os entrevistados pelo estudo, as fontes têm medo de serem reveladas, caso atrasem o pagamento.

As operações têm datas e horários definidos, para gerar o efeito desejado e chegar aos trending topics. Os pagamentos são realizados pela plataforma M-Pesa, criada pela operadora de telefonia  Vodafone e muito popular no país por facilitar pagamentos de qualquer natureza, sem a necessidade de dinheiro em papel.

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A fundação levou os resultados da investigação ao Twitter, que afirmou ter cancelado 100 contas por condutas impróprias em relação às políticas de desinformação e spam da rede social. 

“Após investigação, embora não tenhamos conseguido confirmar de forma independente a atividade de tweets pagos descrita no relatório, pudemos confirmar a presença de pelo menos uma rede de contas coordenadas — que parecia estar ligada a um conjunto anterior de restrições contra atividades semelhantes, realizado por nossas equipes em 2020.”

Os pesquisadores envolvidos nas descobertas sobre o esquema no Quênia responsabilizam a rede social por não tomar medidas mais drásticas em relação ao uso dos trending topics como ferramenta de desinformação.

“Indiscutivelmente, o Twitter tem um incentivo para consertar isso. Ele vende anúncios de “trends promovidas” e “tweets promovidos”. Isso o coloca nessa confusão, pois significa que eles colocam anúncios de marcas no meio de conteúdo inautêntico e perigoso.”

A pesquisa cita como referência a Ad Dynamo, agência que vende Twitter Ads no Quênia, que atualmente oferece trends promovidas, quando uma marca pode inserir conteúdo pago entre os tópicos mais populares do Twitter, por US$ 3.500 (R$ 18,2 mil) por dia.

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A pesquisa revela que a rede usada por mercenários inclui “contas-fantoche”, criadas unicamente para retuitar conteúdo das campanhas desinformativas e também publicar conteúdo com as hashtags combinadas para criar o trending topic desejado.

As contas fake, possivelmente controladas por robôs, usam fotos de mulheres atraentes para conseguir o maior número possível de seguidores homens,

Contas participantes podem inclusive ter o selo azul de verificação do Twitter — o que rende uma remuneração extra. 

“Um influenciador com quem falamos mencionou que as pessoas que possuem as cobiçadas contas de “checagem azul” muitas vezes as alugam para campanhas de desinformação. Essas contas verificadas podem melhorar as chances de tendência da campanha”, aponta a pesquisa.

“O dono da conta geralmente recebe uma parte do pagamento da campanha”, afirma um influenciador-mercenário entrevistado no estudo.

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Em alguns casos, ativistas quenianos relataram ter saído da rede social após os ataques de reputação. 

Mais do que descreditar seus alvos, as campanhas têm o objetivo de borrar a diferença entre verdade e mentira, afirmam os pesquisadores — algo que pode significar um prejuízo severo na imagem do Twitter.

“Há poucas evidências de que as operações realmente influenciem as opiniões das pessoas. No entanto, eles afetam a forma como os usuários do Twitter interagem com seu ambiente de informações. O objetivo de tais operações é oprimir. É criar um ambiente onde ninguém mais saiba o que é verdadeiro ou falso. Seu trabalho é exaurir o pensamento crítico e aniquilar a verdade”, colocam os pesquisadores.

“Tudo isso está levando à autocensura de alguns dos ativistas que usam a plataforma. Muitos acham que é inútil usar uma plataforma que não pode entregar nenhum envolvimento significativo.”

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Nos Estados Unidos, a plataforma baniu o jornalista Alex Berenson, ex-repórter do New York Times  e fonte frequente de conteúdo crítico a medidas de combate à Covid-19. Ele foi acusado de estar divulgando informações falsas ou distorcidas em suas publicações.

No início do mês, o Twitter avançou também sobre o assédio virtual e lançou  em fase de testes o Safety Mode , inteligência artificial que vai monitorar comentários e mensagens diretas para barrar automaticamente conteúdo potencialmente ofensivo ao usuário.

O assédio direto a pessoas físicas é também uma das características das campanhas de desinformação reveladas no Quênia. Numa mudança de tática, os mercenários digitais atacam pessoalmente ativistas, políticos e magistrados, na tentativa de sujar a imagem dos opositores da emenda constitucional BBI. 

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