Londres – A saga de ataques sofridos pela jornalista indiana Rana Ayyub, colunista do Washington Post, teve um desdobramento inusitado: a polícia de Mumbai prendeu dois colegas de profissão por divulgarem fake news contra ela.

Os jornalistas presos trabalham no site The Scoop Beat, um portal de notícias de variedades que cobre política, entretenimento, esportes e temas gerais da Índia.

No dia 26 de janeiro, o veículo publicou dois vídeos em seu canal do YouTube com informações falsas sobre Rana Ayyub, e chegou a ironizar as reclamações da jornalista, mas depois pediu desculpas. Agora, os dois autores dos ataques foram presos. 

Jornalista indiana teve vídeos manipulados publicados por site

Crítica ao governo do primeiro-ministro Narendra Modi, Rana Ayyub ganhou projeção internacional ao sofrer diversas perseguições – incluindo do próprio Estado. Ela tem sua segurança monitorada por entidades internacionais defensoras da liberdade de imprensa

O mais recente ataque contra Ayyub foi o congelamento de contas bancárias pelo órgão fiscal do governo, que alegou a medida como parte de uma investigação de suposta lavagem de dinheiro.

Ela é uma entre várias jornalistas de diversos países vítimas de assédio e ameaças por parte de integrantes de governos autoritários ou de pessoas que se sentem prejudicadas com revelações sobre crimes e escândalos. 

No entanto, ataques vindos de outros veículos de imprensa não são comuns. 

Um dos vídeos publicados pelo The Scoop Beat, com o título “A Arábia Saudita baniu Rana Ayyub”, alegava que a jornalista indiana era auxiliada financeiramente pelo Paquistão e continha tweets falsos atribuídos a ela que expressavam desrespeito à Índia.

Segundo Ayyub, os vídeos resultaram em mais de 26 mil postagens com manifestações de ódio contra ela no Twitter, incluindo ameaças de estupro e morte.

Na ocasião, a jornalista condenou as fake news na rede social e cobrou medidas da plataforma contra o comportamento abusivo dos usuários que a atacavam.

A princípio, o perfil do Scoop Beat respondeu de forma irônica à queixa de Rana Ayyub, dizendo que não pediria desculpas, pois seu conteúdo trazia a “verdade”. A mensagem, no entanto, foi apagada.

Três semanas depois, em 17 de janeiro, o portal de notícias publicou uma nota pedindo desculpas à jornalista “pelo inconveniente causado” e afirmando que “tomou medidas severas contra os funcionários envolvidos na produção dos vídeos”. O conteúdo também foi removido do YouTube.

A nota foi, no entanto, criticada por vários usuários da rede social por ser “sem sentido”. A própria Ayyub respondeu à publicação afirmando que não estava disposta a aceitar o pedido de desculpas.

A jornalista registrou uma queixa formal na polícia de Mumbai em 27 de janeiro, buscando justiça por “assédio direcionado” e “notícias falsas” publicadas pelo portal contra ela.

“Essas notícias falsas levaram a uma enxurrada de ódio contra mim. Minha timeline no Twitter foi inundada com ameaças de estupro e morte. Eu e minha família estamos em perigo iminente”, disse Ayyub na denúncia.

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Os dois suspeitos envolvidos na disseminação de fake news contra Rana Ayyub foram presos em 5 de março, em Mumbai.

Vidyanshi Krishkumar Trivedi e Ayush Chandramohan Srivastav, dois jornalistas do Scoop Beats, foram detidos por policiais em resposta à denúncia feita pela jornalista em janeiro.

As prisões de Trivedi e Srivastav elevam para três o número total de pessoas detidas por ameaças à jornalista.

Em 10 de fevereiro, a polícia de Mumbai prendeu Siddharth Shrivastav por publicar ameaças de morte e estupro a Ayyub nas mídias sociais.

Em nota, a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês) congratulou as autoridades indianas pelas prisões no caso de Ayyub.

“Mulheres jornalistas e profissionais de mídia continuam a ser desproporcionalmente alvo de assédio online, e outros mecanismos devem ser introduzidos para proteger contra abusos em nome da liberdade da mídia.

A FIJ insta as autoridades indianas a continuar a ação contra os autores de abuso online para garantir que sejam levados à Justiça”.

Na semana do Dia Internacional da Mulher, a IFJ divulgou resultados de duas pesquisas realizadas no início do ano para avaliar o trabalho de sindicatos e organizações de mídia no combate ao abuso online de mulheres jornalistas.

E descobriu o que 79% dos sindicatos e associações da federação disseram que estavam cientes de casos de abuso online entre seus membros.

Apesar do dado, uma segunda pesquisa apontou que apenas 20% dos profissionais de mídia disseram que seu emprego na mídia adotou um protocolo ou mecanismo que permite que mulheres jornalistas e profissionais de mídia denunciem abusos online e sejam apoiadas e protegidas nesses casos.

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Rana Ayyub x governo da Índia

Uma das jornalistas mais conhecidas da Índia, Rana Ayyub é perseguida por autoridades governamentais há vários anos, mas a situação se agravou nos últimos meses.

Ela virou uma pedra no sapato do governo do primeiro-ministro Narendra Modi, como definiu uma reportagem da revista Time.

Ayyub ganhou destaque depois da publicação independente do livro “Gujarat Files”, de 2016, sobre a violência ocorrida no início dos anos 2000 no estado de Gujarat, que deixou pelo menos 790 muçulmanos e 254 hindus mortos.

No livro, Ayyub acusou Modi, então ministro-chefe de Gujarat, e seus aliados de serem cúmplices da violência antimuçulmana e incluiu gravações de áudio secretas de políticos do partido Bharatiya Janata (BJP na sigla em inglês, Partido do Povo Indiano), agora sob o domínio da Índia.

Segundo a Time, Modi nunca foi formalmente acusado e disse que seu governo usou “força total” para “fazer a coisa certa” em Gujarat.

Desde então, Rana Ayyub é perseguida pelo governo e sofre constantes ataques de ódio nas redes sociais. 

Sua situação fez diversas entidades, incluindo a ONU (Organização das Nações Unidas), a condenarem os ataques e cobrarem medidas do governo da Índia para assegurar a integridade física e profissional da jornalista.

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