Por Luciana Gurgel | MediaTalks Londres 


A disseminação de notícias falsas ou imprecisas sobre política, economia e questões sociais é o efeito colateral do avanço tecnológico que revolucionou a maneira de consumir informação e a interação entre pessoas, empresas, grupos e comunidades, compartilhando ideias em comum por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens.

Com a pandemia do novo coronavírus, porém, ganhou dimensões alarmantes o risco à saúde pública em larga escala representado pela desinformação ligada à Covid-19.

Boatos sobre saúde já existiam bem antes de as redes sociais tomarem conta do mundo. Não são inventados ou propagados apenas por gente mal-intencionada vendendo curas milagrosas ou por interessados em manipulação política. Partem também de indivíduos inocentes disseminando crendices e induzindo de boa-fé pessoas a atos de risco. 

Mas as tecnologias de compartilhamento e autopublicação escancararam a janela de oportunidade para o seu avanço. E o pânico gerado pela doença desconhecida era o combustível que faltava.

Entre as consequências mais preocupantes está a oposição à vacina, baseada em desinformação. Este movimento já existia antes da Covid-19, e vem se agravando, conforme atestam pesquisas de opinião. A mais recente, publicada pelo University College of London no dia 23 de setembro, revelou que 53% dos adultos pesquisados acham que vacinas podem causar efeitos colaterais; 38% acreditam que outras formas de imunização natural são preferíveis e 15% creem que elas não funcionam. 

Nos Estados Unidos, segundo matéria publicada pelo Financial Times em agosto, o número de pessoas dispostas a tomar a vacina contra a Covid-19 caiu de 55% em maio para 41% em julho. A pesquisa foi feita pelo instituto YouGov, 

Na pandemia prevaleceram as fake news reconfiguradas 

O Instituto Reuters para Estudos de Jornalismo da Universidade de Oxford conduziu desde março várias pesquisas localizadas  para investigar o impacto da pandemia do novo coronavírus sobre aspectos diversos, como as formas de consumo de notícias, a confiança nas fontes e a evolução da desinformação. Uma delas, publicada em abril, deteve-se sobre a produção e circulação de fake news na primeira etapa da crise. 

Foram avaliados 225 conteúdos, publicados em inglês, classificados como falsos ou enganosos por agências verificadoras de fatos entre janeiro e o final de março de 2020, a partir de uma amostra da agência First Draft. Os pesquisadores registraram que o número de checagens em inglês aumentou mais de 900% no período. 

A brasileira Cristina Tardáguila, diretora associada da International Fact-checking Network (IFCN), chamou a  Covid-19 de “o maior desafio que os verificadores de fatos já enfrentaram”. 

A maioria (88%) da amostra apareceu em plataformas de mídia social. Bem longe vieram TV (9%), imprensa (8%) e sites (7%). Uma parcela expressiva (59%) da desinformação analisada consistia em reconfiguração − quando informações verdadeiras são distorcidas, recontextualizadas ou retrabalhadas. A desinformação inteiramente fabricada respondeu por 38% da amostra.

Um exemplo citado foi de um post largamente difundido que combinava informações corretas e incorretas sobre como evitar a Covid-19. O texto dizia que o vírus era sensível ao calor − o que é verdadeiro − e poderia ser eliminado se exposto a uma temperatura de 26/27 graus − o que é falso, pois está bem abaixo da temperatura necessária para a sua eliminação. 

O estudo revelou ainda o poder de influência de celebridades e políticos. Na amostra analisada, apenas 20% das fake news eram provenientes de pessoas famosas ou detentoras de poder. Mas o engajamento foi de 69%. Líderes políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro, artistas como Madonna e esportistas como Lewis Hamilton figuram entre os que tiveram postagens removidas. 

O Reuters ressalta que embora a maior parte da desinformação nas mídias sociais tenha origem em pessoas comuns, elas geram muito menos engajamento. Isso evidencia o poder − para o bem ou para o mal − que famosos têm sobre a sociedade. E sua responsabilidade ao postar.  

Plataformas digitais sob pressão 

O trabalho do Instituto examinou ainda a resposta das plataformas de mídias sociais em relação a fake news classificadas pelas agências verificadoras de fatos, apontando uma variação significativa de empresa para empresa. No Twitter, 59% das postagens classificadas como falsas permaneciam ativas quando o relatório foi publicado. No YouTube, 27% ainda estavam no ar, enquanto no Facebook a taxa foi de 24% do conteúdo falso ativo e sem rótulo mantido na rede mesmo após a sinalização.  

O problema é ainda maior quando se leva em conta que as agências checadoras têm acesso limitado à desinformação compartilhada em canais privados, por e-mail, em grupos fechados e pelos aplicativos de mensagem, principalmente o WhatsApp. 

Em entrevista ao jornal digital Politico, em março, Claire Wardle, pesquisadora do Centro Shorenstein de Mídia, Política e Políticas Públicas da Harvard Kennedy School que vem estudando o papel do WhatsApp na desinformação, creditou ao fator emocional o aumento da penetração do serviço de mensagens durante a pandemia. 

“O áudio é um meio emotivo. As pessoas estão recorrendo ao WhatsApp porque têm mais a dizer e querem falar diretamente com seus amigos e familiares”, analisou.

Brasil já era o mais preocupado com fake news antes da pandemia

Se em alguns países as fake news despontaram como grande preocupação social a partir da Covid-19, em outros já tiravam o sono de boa parte da população. O Brasil lidera o ranking. 

A pesquisa global mais recente do Instituto Reuters, realizada em janeiro deste ano, tinha apontado o  País como o mais preocupado com o que é real nas informações veiculadas online. Antes mesmo da Covid-19, 84% dos entrevistados brasileiros diziam-se preocupados com o conteúdo falso na internet, bem acima da média de 56% dos 40 países pesquisados. 

Os cinco países mais preocupados eram, pela ordem: Brasil, Portugal, Quênia, África do Sul e Estados Unidos. Os níveis mais baixos de preocupação foram encontrados em países europeus menos polarizados, como Holanda, Alemanha e Dinamarca.

Os maiores aumentos de preocupação com conteúdo falso verificados em relação à pesquisa anterior ocorreram em Hong Kong (+6), devido ao conflito entre o governo e os manifestantes estudantis, e na Finlândia (+4), em virtude de uma preocupação maior do que a média com a interferência russa em assuntos internos. O índice elevado dos Estados Unidos está ligado às próximas eleições presidenciais.

As maiores quedas de preocupação com o conteúdo online ocorreram no México (-8) e no Reino Unido (-7), devido ao relaxamento das tensões do período pós-eleitoral e do Brexit, respectivamente.

Políticos locais, fonte de desinformação que mais preocupa no mundo

 

Os políticos locais foram considerados os maiores responsáveis pelas informações falsas ou enganosas que preocupam o mundo. Eles foram apontados por quatro em cada dez respondentes da amostra global de 80.155 pessoas ouvidas nos 40 países. O Brasil foi um dos países onde eles foram apontados por mais pessoas, junto com Estados Unidos, Filipinas e África do Sul.

O ranking é completado por ativistas políticos (14% dos respondentes da amostra global), jornalistas (13%), pessoas comuns (13%) e governos estrangeiros (10%). 

Os ativistas políticos foram mais responsabilizados pelo conteúdo falso online em Hong Kong, Noruega e República Tcheca. Os jornalistas foram mais citados em Grécia, Coreia do Sul, Croácia e Estados Unidos. Pessoas comuns tiveram os maiores índices em Japão, Taiwan e Coreia do Sul. E os países mais preocupados com conteúdo falso proveniente de interferência estrangeira foram Dinamarca, Finlândia, Alemanha e Holanda.

Facebook, o canal de desinformação que mais preocupa o mundo

 A pesquisa feita antes da pandemia quis saber também quais eram os canais de informação responsáveis pela preocupação com o conteúdo falso. O campeão foi o Facebook, citado por 29% dos mais de 80 mil respondentes, com grande margem sobre o segundo colocado. Ele foi o mais citado em praticamente toda a Europa e na América do Norte, liderando também em Filipinas, Argentina, África do Sul e Austrália.

Bem atrás do Facebook apareceram YouTube (citado por 6% da amostra global) e Twitter (5%). Embora sem o mesmo peso global, o WhatsApp, também de propriedade do Facebook, aparece com força no Hemisfério Sul como o principal responsável pelo conteúdo falso online em diversos países: Brasil, Malásia, Chile e Cingapura. No Hemisfério Norte, também foi a principal preocupação no México.

O Instituto Reuters enfatizou que a preocupação com o WhatsApp é ainda mais grave porque nessa plataforma as informações falsas tendem a ser menos visíveis e podem ser mais difíceis de combater, pela natureza privada e criptografada das mensagens que circulam pelos grupos. 

Brasil é o país mais preocupado com conteúdo falso do WhatsApp


 Por países, o mais preocupado com o WhatsApp já era o Brasil, onde mais de um terço dos respondentes (35%) apontaram em janeiro o serviço de mensagens como sua maior fonte de preocupação de conteúdo falso online. O Facebook, que lidera no mundo, também foi apontado como preocupação por 24% dos brasileiros.

O Facebook atingiu  o seu maior índice nas Filipinas (47%), embora apareça também como responsável por grande nível de preocupação nos Estados Unidos (35%).

O Twitter era em janeiro visto como o maior problema no Japão (32%) e o YouTube, na Coreia do Sul (31%).

Na pandemia, tudo se agravou 

Na live de lançamento do MediaTalks, todos os participantes manifestaram preocupação com o avanço das fake news. Um deles foi Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha de  S.Paulo e do Agora São Paulo: 

“A pandemia chega para dizer que a diferença entre jornalismo profissional e fake news pode ser a diferença entre a vida e a morte”. 

Ele não exagerou. Instituições de saúde vêm se debruçando sobre a questão desde que a crise da Covid-19 se instalou. Diversos outros estudos vêm comprovando  o potencial de informações falsas levarem pessoas a adotar comportamento de risco em relação à doença. 

Uma pesquisa feita em junho pelo Ipsos/MORI para o King’s College de Londres é um exemplo. Ela demonstrou que 56% dos britânicos que não acreditavam na existência da Covid-19 usavam o Facebook como principal fonte de informação. Já entre os que se informavam por outros canais, incluindo a imprensa, a proporção era de apenas 20%. 

 

Outro estudo, publicado pelo Royal College of Physicians do Reino Unido, examinou 1.225 notícias falsas sobre a Covid-19 em língua inglesa para entender sua origem e características.  Dois dos autores têm doutorado em biblioteconomia e ciência da informação e um terceiro possui pós-graduação em farmacologia. 

Com a ajuda do software VOSviewer, os pesquisadores compilaram uma lista com as palavras mais frequentes e estabeleceram um critério de pontuação com base na relevância e no número de vezes em que apareciam, permitindo identificar padrões. Realizaram então uma análise relacional de conceitos em um texto por meio da técnica de análise de proximidade.

O trabalho apontou as redes sociais como responsáveis pela metade da desinformação médica em torno da Covid-19. Em seguida figuram fontes múltiplas, indivíduos − podendo englobar conversas pessoais ou por meio de aplicativos de mensagens − e o presidente Donald Trump, autor de declarações que contradiziam a posição das autoridades sanitárias.

Na conclusão, os autores alertaram para os danos causados por desinformação envolvendo desde teorias conspiratórias a teses pseudocientíficas relacionadas a diagnóstico, tratamento, prevenção, origem e propagação do vírus. E fizeram um chamado à sociedade: 

“A escala da crise e a onipresença das informações enganosas exigem que cientistas, profissionais da informação em saúde e jornalistas considerem sua responsabilidade profissional ajudar o público a identificar notícias falsas. Eles devem fazer o máximo para garantir que informações válidas e baseadas em evidências sejam disseminadas, usando tanto as mídias sociais quanto as tradicionais − impressa, rádio e televisão.”

QAnon e antivacina, ameaças à vista 

Com a doença ainda sem controle em vários países e voltando a assombrar nações onde números de casos e mortes já tinham sido reduzidos, medidas de proteção continuam se fazendo necessárias. E a vacina parece ser a única saída para pôr fim à crise, que não é apenas de saúde, mas também social e econômica. 

Além do vírus, entretanto, outros inimigos colocam em risco a solução. Grupos antivacina ganham espaço, sobretudo nas redes sociais. Organizações pregam a desobediência, desafiando medidas de isolamento social e uso de máscaras. E teorias conspiratórias extremistas, como o movimento QAnon, conquistam adeptos aproveitando-se do clima de incerteza. 

Desmoralizar autoridades como forma de contestar a legitimidade de medidas de isolamento tem sido uma das estratégias mais usadas, segundo levantamento da Agência Lupa publicado no site da Piauí, que contabilizou 814 verificações de fake news durante a crise em 63 países, a partir das bases de dados do Coronavirus Facts Alliance e Corona Verificado.  

A reportagem aponta a índia como campeã, com 365 checagens. Em seguida veio o Brasil, com 59. Entre os conteúdos sinalizados como falsos estão fotos antigas de líderes políticos − inclusive brasileiros −, procurando dar a impressão de que estariam desrespeitando as regras.  

ONG britânica denuncia pouca ação por parte das plataformas digitais 

A organização britânica Center for Countering Digital Hate vem sendo incisiva na cobrança de atitude por parte das plataformas digitais para estancar a disseminação de notícias falsas sobre vacinas. 

Um relatório divulgado em julho havia apontado 409 contas em mídias sociais em língua inglesa pregando a rebeldia contra a imunização, com 58 milhões de seguidores. A ONG estima que ganharam pelo menos 7,8 milhões de adeptos desde 2019. 

O estudo revelou que o movimento era então mais forte no Facebook, com 31 milhões de seguidores − mais da metade dos seguidores das demais redes sociais somadoss. No YouTube eram quase 17 milhões de assinantes, 7 milhões no Instagram e 2 milhões no Twitter

E podem ser mais. Os autores consideram que há quem relute em admitir publicamente as opiniões antivacinação: “89% das páginas do Facebook em nossa amostra têm mais seguidores do que curtidas, com a principal diferença de que curtidas são visíveis para outros usuários. Em contraste, apenas 44% das 50 principais páginas do Facebook têm mais seguidores do que curtidas”.

Outro relatório da mesma ONG apresentou uma pesquisa realizada em agosto nos Estados Unidos revelando que 29% dos entrevistados não pretendem tomar a vacina contra a Covid-19. Em junho o percentual era de 26%. A proporção sobe para 35% entre os que se informam principalmente por redes sociais. E outros 17% dizem não ter certeza de que se vacinarão. 

Os próximos meses serão decisivos para a recuperação da economia mundial, para a saúde pública e  para a busca de soluções mais efetivas para estancar a sangria da desinformação, que até agora vem se mostrando tão resistente quanto o coronavírus.