A “guerra fria” da China contra a cultura ocidental e a imposiรงรฃo de barreiras ao contato de seus cidadรฃos com o resto do mundo via internet, que se intensificou nos รบltimos meses, teve novo capรญtulo com a saรญda do LinkedIn da China, anunciada nesta quinta-feira (14/10).
Ela nรฃo รฉ um fato isolado e deve aprofundar o isolamento dos chineses, que desde 2009 jรก nรฃo tinham acesso a Twitter, Facebook e YouTube.
O distanciamento dos chineses vem sendo ainda mais agravado com as recentes interferรชncias nas redes sociais locais WeChat e Weibo para conter a expansรฃo da cultura pop, alรฉm da proibiรงรฃo de culto a famosos e de homens “efeminados” na mรญdia associados ao Ocidente.
O motivo da saรญda da empresa, que pertence ร Microsoft, foi a pressรฃo do governo para que bloqueasse perfis de acadรชmicos, ativistas e atรฉ jornalistas estrangeiros que escrevem sobre a China a partir de outros paรญses.
A plataforma aceitou a pressรฃo e bloqueou os perfis para usuรกrios chineses. Mas decidiu sair do paรญs diante da repercussรฃo negativa na mรญdia e crรญticas de entidades de defesa da liberdade de imprensa, como o CPJ (Comitรช de Proteรงรฃo de Jornalistas).
No entanto, nรฃo vai sair de vez, o que de certa forma corrobora a tese dos que a criticaram de cumplicidade com a censura.
LinkedIn sai da China, mas nรฃo totalmente
Ao informar a saรญda, a rede tambรฉm anunciou a intenรงรฃo de voltar no fim de 2021 na forma de uma nova plataforma, chamada InJobs. Serรก um site de empregos, sem recursos que permitem aos usuรกrios compartilhar artigos, ideias e opiniรตes – bem ao gosto do governo chinรชs.
O comunicado em que o LinkedIn explica a decisรฃo de fechar de vez no paรญs, assinado por Mohak Shroff, chefe de engenharia da empresa, refere-se indiretamente aos problemas com o governo, mas sem crรญticas diretas.
โEmbora tenhamos obtido sucesso em ajudar os membros chineses a encontrar empregos e oportunidades econรดmicas, nรฃo encontramos o mesmo nรญvel de sucesso nos aspectos mais sociais de compartilhar e se manter informado.
Tambรฉm estamos enfrentando um ambiente operacional significativamente mais desafiador e maiores requisitos de conformidade na China.”
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China, um dos maiores mercados do LinkedIn
A saรญda da China รฉ um baque para o LinkedIn, que perde um de seus principais mercados. O nรบmero de usuรกrios chineses cresceu rapidamente desde que a Microsoft o comprou em 2016, e รฉ estimado em 54 milhรตes, atrรกs apenas dos Estados Unidos e รndia.
Segundo a The Economist, os chineses representam cerca de 7% do total global de usuรกrios do LinkedIn, um percentual cinco vezes maior do que os 1,4% que representavam em 2014.
Por ser uma plataforma de relacionamento profissional e acadรชmico, o LinkedIn sempre foi menos sujeito aos problemas que afetam outras plataformas, jรก que o discurso de รณdio e a polarizaรงรฃo nรฃo fazem parte do repertรณrio dos usuรกrios que estรฃo lรก para mostrar suas habilidades profissionais e se posicionar no mercado de trabalho. Empregadores nรฃo costumam gostar de briga.
Talvez por isso ele tenha conseguido resistir tanto tempo na China. Em 2014, fez um acordo aceitando exigรชncias do governo chinรชs para operar no paรญs, e ao mesmo tempo prometeu ser transparente sobre como conduziria seus negรณcios, dizendo discordar da censura.
Mas jornalistas e acadรชmicos frequentemente fazem postagens sobre suas reportagens, estudos, teses e outros conteรบdos nem sempre favorรกveis a Pequim. E isso comeรงou a incomodar este ano.
Censura na China nรฃo se aplicava ao LinkedIn
Para os chineses, o LinkedIn era uma janela aberta para o mundo, jรก que estavam restritos ร s plataformas chinesas Weibo, similar ao Twitter, e WeChat, uma espรฉcie de WhatsApp “avanรงado”, que alรฉm de troca de mensagens tem um enorme rol de serviรงos, como pagamentos e reservas de viagens.
Em marรงo, a empresa suspendeu o cadastramento de novos usuรกrios alegando que precisava revisar as leis locais para se certificar de que estava em conformidade.
Segundo o Wall Street Journal, na mesma รฉpoca, o รณrgรฃo regulador da internet da China disse aos funcionรกrios do LinkedIn para regulamentar melhor seu conteรบdo e deu um prazo de 30 dias para o cumprimento da ordem.
O perรญodo coincide com a fase em que a China passou a anunciar medidas restritivas contra a cultura ocidental, assumindo claramente a intenรงรฃo de reduzir a influรชncia do Ocidente na mรญdia estatal. E tambรฉm com o pedido do presidente Xi Jiping a lรญderes do Partido Comunista para se empenharem em melhorar a imagem do paรญs.
O LinkedIn ainda tentou se manter vivo em solo chinรชs, e para isso aceitou (total ou parcialmente) a instruรงรฃo de censura, bloqueando os perfis.
Exportaรงรฃo da censura chinesa
A gota d’รกgua para a saรญda foi a decisรฃo de suspender os perfis de duas jornalistas muito conhecidas que escrevem sobre a China a partir do exterior, Bethany Allen-Ebrahimian e Melissa Chan, que ficaram inacessรญveis para usuรกrios chineses.
O Axios fez uma reportagem acusando diretamente o LinkedIn de compactuar com a censura.
O coordenador do Centro para Proteรงรฃo de Jornalistas, Carlos Martinez de la Serna, afirmou que โao pedir aos jornalistas que alterem conteรบdo que pode fazer referรชncia a assuntos considerados โsensรญveisโ para o Partido Comunista Chinรชs, a fim de recuperar o acesso ร versรฃo chinesa do LinkedIn, a empresa estรก facilitando a exportaรงรฃo da censura chinesa de jornalistas em todo o mundoโ.
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Jack Ma, fundador do Alibaba, nรฃo escapou
O movimento de censura que a China intensificou este ano mira tambรฉm em algumas companhias do prรณprio paรญs que durante algum tempo desfrutaram de liberdade.
Em marรงo, o governo cortou as asas de Jack Ma, dono do Alibaba, que virou uma celebridade global do mundo dos negรณcios e acumulou uma sรฉrie de empresas de mรญdia no portfรณlio do seu conglomerado.
Segundo o site especializado Techcrunch, ele entrou no radar do Governo sobretudo depois da compra do South China Morning Post, principal jornal de lรญngua inglesa em Hong Kong, palco de grande tensรฃo polรญtica e social.
Em fevereiro, ficou ausente de uma lista de grandes empresรกrios publicada pelo jornal estatal Shanghai Securities News elogiando os destaques do ano em tecnologia. Em marรงo, foi instado a se desfazer de alguns ativos.
O motivo seria a โcrescente influรชncia do bilionรกrio sobre a opiniรฃo pรบblica no paรญs”, como relataram os principais jornais financeiros, citando fontes locais.
China censura celebridades online e “afeminados”
No inรญcio de agosto, o paรญs anunciou interferรชncias no aplicativo WeChat e na rede social Weibo.
O WeChat foi processado por procuradores pรบblicos, que afirmam que o modo โyouthโ (juventude, em inglรชs), que limita o acesso de menores de idade ร totalidade de funcionalidades do aplicativo, nรฃo protege as crianรงas chinesas.
A plataforma decidiu remover sua lista de celebridades mais โbombรกsticasโ na China apรณs o jornal estatal Peopleโs Daily publicar crรญticas ao โapoio irracionalโ que fรฃs estariam dando a pessoas โnรฃo dignas de valorโ.
A China anunciou ainda que estabeleceria uma lista de canรงรตes de karaokรช com โconteรบdo ilegalโ a partir de outubro, de acordo com o Ministรฉrio da Cultura e Turismo.
Sem especificar o que exatamente torna uma mรบsica passรญvel de censura, o ministรฉrio disse que o conteรบdo proibido incluiria aquele que pรตe em risco a unidade nacional, a soberania ou a integridade territorial, viola as polรญticas religiosas do Estado ao propagar seitas ou superstiรงรตes, ou que incentiva atividades ilegais como jogos de azar e drogas.
Em seguida, plataformas de mรญdia social chinesas deletaram as contas do ator e cantor chinรชs Zhang Zhehan, estrela de sรฉries e filmes do paรญs, apรณs uma onda de cancelamento gerada por fotos dele no no Santuรกrio Yasukuni, no Japรฃo, dedicado a soldados japoneses mortos em batalha.
Leia mais | China โcancelaโ astro de sรฉries e filmes apรณs foto em santuรกrio japonรชs que evoca herรณis de guerra
Dias depois, a autoridade que regula o ciberespaรงo chinรชs proibiu qualquer rede social ou site na internet do paรญs de manter qualquer ranking de celebridades.
De acordo com a mรญdia estatal, sรณ podem ser publicadas listas que classifiquem obras como mรบsicas, filmes e programas de TV, mas devem reduzir a รชnfase em gostos e comentรกrios e, em vez disso, โaumentar o peso de indicadores como orientaรงรฃo para o trabalho e avaliaรงรฃo profissionalโ.
Propaganda da China no exterior
Ao mesmo tempo em que censura ou pressiona as redes sociais e o ciberespaรงo, o governo chinรชs se utiliza da tecnologia para fazer sua propaganda no exterior.
Em maio, a Federaรงรฃo Internacional de Jornalistas apresentou um estudo feito por pesquisadores australianos revelando uma eficiente estratรฉgia de imprensa โ com programas de treinamento para jornalistas, viagens patrocinadas e acordos de compartilhamento de conteรบdo jornalรญstico em idiomas locais โ destinada a reverter a imagem negativa da China pelo fato de o coronavรญrus ter se originado na cidade de Wuhan.
O estudo The Covid-19 Story: Unmasking Chinaโs Global Strategy (A histรณria da Covid-19: Desmascarando a Estratรฉgia Global da China) mostrou que a Covid-19 foi habilmente transformada de problema em oportunidade, com a China ativando seus canais de disseminaรงรฃo de informaรงรตes no exterior para inundar os meios de comunicaรงรฃo estrangeiros com ofertas de notรญcias nacionais e internacionais em idiomas locais, semeando matรฉrias positivas sobre como administrou a pandemia.
Leia mais | Estudo mostra estratรฉgia da China para ocupar espaรงos e reverter imagem negativa na imprensa global
Em junho, o jornal britรขnico The Times revelou que a CGTN, emissora de TV estatal da China, que em fevereiro teve suas transmissรตes suspensas pelo รณrgรฃo regulador britรขnico por nรฃo cumprir a legislaรงรฃo local de radiodifusรฃo, estava recrutando estudantes chineses para se tornarem influenciadores digitais a favor do paรญs. E remunerando influenciadores britรขnicos que possuem canais sobre a China para exibirem conteรบdo positivo.
O jornal identificou postagens e vรญdeos nas redes sociais favorรกveis ao paรญs asiรกtico, e teve acesso a um vรญdeo em que representantes da CGTN convocam os estudantes a se juntarem a eles. O esforรงo รฉ parte de uma campanha para criar um exรฉrcito de โdesafiadores da mรญdiaโ, formado por influenciadores e vloggers da Internet em todo o mundo.
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Em agosto, um relatรณrio da organizaรงรฃo britรขnica Center for Information Resilience (CIR) revelou a existรชncia de uma nova e extensa rede formada por mais de 400 contas dedicadas a disseminar conteรบdo favorรกvel ร China e contra o ocidente nas redes sociais.
A aรงรฃo tem como alvo principal os Estados Unidos, segundo o estudo. A maior parte do material, coletado entre marรงo e abril deste ano, estava no Twitter, Facebook, YouTube e Instagram, em inglรชs e chinรชs, combinando contas reais, falsas e โroubadasโ.
A ONG detectou o uso da tecnologia StyleGAN, que permite criar rostos falsos para ilustrar os perfis, dando aparรชncia de pessoas de verdade.
Imagem adorรกvel
Em reuniรฃo realizada em junho com 25 lรญderes do Partido Comunista, o presidente chinรชs Xi Jinping pediu mais esforรงo para que fosse mostrada โa imagem adorรกvel do paรญsโ.
Ele disse que com as ferramentas de comunicaรงรฃo certas, a China teria mais amigos e seria vista em todo o mundo como โconfiรกvel, adorรกvel e respeitรกvelโ.
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