Londres – Além de todo o aparato estatal de vigilância e perseguição, a China está adotando uma nova tática em sua escalada de repressão contra a imprensa: o uso de cidadãos para tirarem a credibilidade de informações publicadas por jornalistas estrangeiros ou até mesmo de ascendência chinesa que trabalham para veículos ocidentais fora do país.
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) denunciou que entidades ligadas ao Estado chinês passaram a perseguir publicamente profissionais de mídia estrangeiros, resultando em grandes campanhas de assédio online e pessoal.
Como parte dessa nova tática, veículos estatais e cidadãos populares na rede social Weibo, postam os nomes e as fotos de jornalistas estrangeiros que “divulgam e atacam a China”, chamando sua cobertura de “tendenciosa” ou “desonesta” e fazendo ameaças.
Jornalistas estrangeiros têm dados e localização expostos na China
A China é um notório censor da mídia do país, pois o governo supervisiona praticamente todo o conteúdo publicado em qualquer meio de comunicação. No último Índice Global de Liberdade de Imprensa divulgado pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), o país foi classificado em 175º lugar na avaliação de 180 países.
De acordo com o censo carcerário anual do CPJ, o país também é o que mais prende jornalistas do mundo. Mas o trabalho de correspondentes estrangeiros, que escapa à repressão midiática da China porque é publicado no exterior, tem sido historicamente mais difícil para as autoridades silenciarem.
Porém, o CPJ destaca que o país passou a assediar jornalistas estrangeiros online à medida que se tornou mais sensível à sua imagem no exterior em meio a acusações de que lidou mal com a pandemia da covid-19.
“Ir atrás de jornalistas estrangeiros faz parte de uma ampla estratégia de controle de todas as informações, incluindo as vozes online, o que de fato se tornou mais desafiador para eles em todas as frentes à medida que os métodos de comunicação aumentam e se diversificam ”, disse Sophie Beach, do China Digital Times, ao comitê.
“Mas também faz parte de sua estratégia reescrever a narrativa global sobre a China, especialmente sobre sua atuação contra a covid.”
Spamouflage, parte da máquina de repressão da China no Twitter
Os ataques não acontecem apenas em redes chinesas. Uma análise dos pesquisadores Danielle Cave e Albert Zhang, do Australian Strategic Policy Institute (ASPI) citada pelo site Axios afirma que uma campanha de ataques a jornalistas mulheres que trabalham em veículos ocidentais está sendo conduzida por meio de uma rede de contas no Twitter chamada de “Spamouflage”, ligada ao estado chinês.
De acordo com o Axios, os ataques foram admitidos pelo Twitter, que informou ter suspendido mais de 400 contas por violação de políticas. O governo chinês negou envolvimento com as contas.
Repressão na China ameaça trabalho da imprensa estrangeira
A jornalista Iris Hsu, correspondente do CPJ na China, apontou como a hostilidade contra profissionais de mídia estrangeiros tem aumentado à medida que também cresce a repressão da imprensa pelo governo.
Para o CPJ, essa reação está diretamente ligada às críticas que o país recebeu desde o surgimento do coronavírus.
Hsu destacou como exemplo os ataques sofridos por jornalistas internacionais que foram à cidade de Zhengzhou, na província de Henan, para cobrir uma grande inundação em julho de 2021. No local, moradores os acusaram de “espalhar boatos” e “manchar a [imagem da] China”.
A Associação de Correspondentes Estrangeiros da China denunciou que muitos deles também receberam mensagens de assédio nas redes sociais e ligações intimidatórias com graves ameaças.
Leia também
China “cai nas graças” do QAnon turbinada pelas fake news da Rússia na guerra, diz estudo
Segundo o CPJ, esse assédio direcionado aos jornalistas estrangeiros ou que trabalham para a mídia internacional foi incentivado pela Liga da Juventude Comunista de Henan, uma organização oficial de nível inferior do Partido Comunista Chinês que considerou a cobertura jornalística internacional das enchentes como “depreciativa”.
Na plataforma Weibo, a liga incitou seus seguidores a descobrirem o paradeiro do correspondente da BBC Robin Brant.
Corroborando as “acusações” da entidade, o Ministério das Relações Exteriores da China acusou Brant de “distorcer a situação real dos esforços do governo chinês para organizar resgates e a coragem da população local para se salvar, e insinuar ataques ao governo chinês, cheios de preconceito ideológico e duplicidade de critérios.”
Sophie Beach, gerente de operações e comunicações do China Digital Times, organização com sede nos EUA que arquiva e traduz conteúdo censurado na internet da China, diz que a censura e perseguição online aumentou desde a nova lei de segurança nacional.
“Ataques nacionalistas contra pessoas vistas como críticas à China acontecem há anos, contra jornalistas, ativistas de direitos humanos e outros, de diferentes maneiras.
Mas parece que os ataques online se tornaram mais frequentes e mais proeminentes nos últimos anos.”
Leia também
Hong Kong segue reprimindo imprensa, com prisão de um de seus mais conhecidos jornalistas
Repressão da China atinge jornalista americana
Outra vítima de perseguição online foi a correspondente da NPR (emissora pública dos EUA) em Pequim, Emily Feng. Ela foi foi a Liuzhou, uma cidade na região autônoma de Guanxi, no sul da China, para escrever sobre a iguaria chinesa “luosifen”, ou macarrão de caracol.
Durante sua visita para apurar a matéria, Feng foi seguida por autoridades que tentaram impedir que ela relatasse o que era para ser uma história “divertida”, descreveu a jornalista no Twitter.
Depois que a reportagem foi publicada no início deste ano, o assédio online começou: Feng foi rotulada de “cidadã estrangeira anti-China de ascendência chinesa” por publicações no Weibo e em sites de notícias chineses.
O CPJ descreve como as palavras dela foram distorcidas para manipular a população chinesa:
“Um site em particular, o College Daily, financiado pelo Estado, parece ter deliberadamente distorcido as palavras de Feng. ‘Jornalista de mídia estrangeira mais uma vez desenterra ‘sujeira na China’: Luosifen causará outra pandemia de covid’, dizia a manchete, seguida por um artigo com uma tradução errada.
Em sua matéria na NPR, Feng se referiu ao macarrão de caracol como ‘outro lanche que pode manter a China entretida por mais um ano em confinamento’, mas o College Daily o transformou em um lanche ‘que pode manter a China mais um ano em confinamento’.”
Leia também
Jornalismo livre de Hong Kong foi ‘minado’ por mídia estatal pró-Pequim
A mesma publicação passou a atacar a jornalista da NPR com capturas de tela de duas reportagens.
“Quase todos os artigos que ela publicou na NPR foram direcionados à China. Você pode dizer apenas pelos títulos que ela não conseguiu dizer nada de bom”, disse matéria do College Daily, usando traduções de má qualidade e enganosas das reportagens de Feng.
Em um exemplo, o título original “A China se destaca nos Jogos Paralímpicos, mas seus cidadãos com deficiência estão lutando por mais oportunidades” foi traduzido como: “A China se destaca nas Paralímpiadas, mas seus cidadãos com deficiência ainda lutam para entrar nos Jogos Paralímpicos”.
Ataques a jornalistas de origem asiática fora da China
O CPJ explica que o ataque à jornalista da NPR pelo College Daily também representa uma tendência crescente da propaganda chinesa direcionada a repórteres de ascendência do leste asiático, cujas reportagens independentes são percebidas pelas autoridades como uma traição às suas raízes e à sua pátria.
Sophie Beach detalha:
“Jornalistas de ascendência chinesa são chamados de ‘traidores da raça’ se se envolverem em qualquer reportagem sobre a China que seja menos do que lisonjeira.
Os piores ataques parecem ser direcionados a mulheres de ascendência chinesa porque o nacionalismo sempre tem uma forte corrente de misoginia”.
Mas no entendimento do CPJ, a narrativa de que jornalistas de origem chinesa servem como ferramentas políticas para a mídia e os governos ocidentais baterem na China pode ter “usos sinistros” além de desacreditar seu trabalho, levantando temores de que eles pudessem enfrentar acusações legais no país.
O levantamento da organização cita como exemplo um caso ocorrido em dezembro de 2021.
O tabloide de propaganda estatal Global Times, uma ramificação do jornal estatal The People’s Daily, descreveu a repórter investigativa visual Muyi Xiao, nascida na China e que trabalha no New York Times, como um exemplo de um profissional que usa a mídia ocidental para “emboscar seus camaradas e sua pátria por trás”.
O artigo observou que o currículo de Xiao incluiu trabalhos com a Fundação Magnum, ChinaFile e outros grupos. O jornal chamou algumas dessas organizações de ONGs “anti-China”, acusando Xiao de “mentir para o coração” ou agir com o “zelo de um convertido” em sua afiliação a elas”.
“Ao associar Xiao a ONGs estrangeiras, o Estado pode estar preparando o terreno para invocar a Lei de Administração de Atividades de Organizações Não-Governamentais Ultramarinas, que proíbe cidadãos chineses de ‘realizar atividades temporárias na China continental’ e ‘atuando na qualidade de agente’ para ONGs estrangeiras.
Aqueles considerados culpados de roubar, coletar secretamente, comprar ou fornecer ilegalmente segredos de Estado a organizações estrangeiras podem enfrentar de cinco a 10 anos de prisão.”
Nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim de 2022, a chefe do escritório do Washington Post China, Lily Kuo, nascida nos EUA filha de taiwaneses, recebeu tanta reação no Twitter por causa de uma reportagem sobre o mascote Bing Dwen Dwen, alvo de zombaria, que foi forçada a tornar seus tweets temporariamente privados.
Mas a jornalista relatou que os ataques continuaram via email. Uma das mensagens a chama de feia, estúpida, diz que sua cabeça cheia de m* deveria ser destruída e finaliza com um “vá para o inferno”.
I blocked a bunch of accounts and made my tweets protected today to stop what seemed like an unending steam of abuse after a Bing Dwen Dwen story. So now they are emailing me their insults! This one actually made me laugh. pic.twitter.com/YJWbkQsN0n
— Lily Kuo (@lilkuo) February 11, 2022
Repórteres que não são cidadãos chineses enfrentam menos riscos, mas não são imunes à repressão da China.
O CPJ lembrou o caso do correspondente da BBC em Pequim, John Sudworth. Em março de 2021, ele deixou a China, onde estava há nove anos, devido à vigilância, obstrução, intimidação e ameaças de ação legal contra ele e sua equipe.
Sudworth tornou-se alvo de campanhas de propaganda online depois de relatar as origens da covid-19 , os campos de reeducação e o trabalho forçado na indústria de algodão de Xinjiang.
Em uma entrevista coletiva no ano passado, depois que Sudworth deixou o país, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Hua Chunying , disse a jornalistas estrangeiros: “Há um preço a pagar por aqueles que fazem boatos e difamação”.
O comitê aponta que somente dois dos 50 jornalistas presos na época do censo do CPJ em 2021 eram repórteres internacionais — o que significa certo alívio para profissionais de outras nacionalidades que atuam no país.
Leia também
ONU critica ‘politização crescente’ da imprensa e impacto de mídias sociais no jornalismo