Londres – Há um ano, em 15 de agosto, o grupo extremista Talibã chegou à capital do Afeganistão, Cabul, tomando novamente o poder e colocando fim a um período em que a ocupação pelos EUA e aliados ocidentais havia devolvido ao país uma parte de suas liberdades. 

Mesmo durante a ocupação, as liberdades de imprensa e de expressão eram ameaçadas por extremistas, mas nada se compara ao que viria a acontecer a partir daquele 15 de agosto. 

Em um ano, a mídia independente foi praticamente dizimada. Jornalistas tiveram que fugir ou trabalhar sob risco. Quem acreditou na promessa do Talibã de que a imprensa poderia atuar livremente só tem motivos para se decepcionar. 

Há um ano, Talibã deu sinais positivos 

O episódio em que homens armados impediram o trabalho de uma equipe de TV que documentava uma doação de alimentos feita pela ONU em Cabul, na semana passada, sem se importarem com a transmissão estar sendo feita ao vivo, é apenas um exemplo da deterioração que se seguiu à retomada do poder pelo Talibã,há um ano. 

A marcha rumo a Cabul, tomando o controle de cidades pelo caminho, foi mais rápida do que o mundo esperava.

O então presidente Ashraf Ghani fugiu do Afeganistão. E as forças ocidentais lideradas pelos EUA que já se preparavam para deixar o país depois de 20 anos de ocupação não ofereceram resistência. 

O clima de paz aparente foi reforçado por uma mudança no padrão de comunicação do grupo extremista com a mídia e com a sociedade, que chegou a ser apelidado de ‘Talibã 2.0’.

No dia da ocupação, um domingo, um porta-voz do grupo ligou para uma repórter da BBC que estava ao vivo e deu uma longa entrevista. em tom tranquilizador. 

Dois dias depois, os novos líderes do país realizaram uma entrevista coletiva. Bem vestidos e serenos, deixaram para trás a imagem de soldados em roupas de guerra e discurso agressivo. 

Jornalistas mulheres foram autorizadas a participar. E uma delas, da rede Al Jazeera, foi a primeira a fazer perguntas. 

Talibã recusou-se a assinar compromisso com RSF

Mas nem todos estavam confiantes.

Uma comissão da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) tinha ido ao país em julho de 2021 avaliar a situação da imprensa e dos jornalistas locais, que àquela altura já era crítica nas cidades retomadas pelo grupo antes de chegar a Cabul. 

O premiado fotógrafo da Reuters Danish Siddiqui morreu em Kandahar cobrindo um confronto entre combatentes.

Este ano, a família decidiu entrar com uma ação na Corte Penal de Haia acusando o grupo de responsável pela morte. 

No dia da tomada da capital, há um ano, o principal homem de RP do Talibã, Zabihullah Mujahid, dialogou com emissários da RSF e reafirmou a intenção de respeitar o trabalho da imprensa, mas recusou-se a assinar um documento proposto pela RSF.

A organização emitiu um comunicado duvidando das reais intenções do Talibã− em particular sobre a autorização para mulheres jornalistas trabalharem.

As indagações eram: que direitos terão as mulheres, incluindo jornalistas? Seria a mídia independente instada a transmitir programação religiosa, como aconteceu em várias cidades durante a marcha para Cabul? Jornalistas continuariam a ser assassinados e encarcerados no país que se tornou um dos mais mortais para a imprensa?

Em um balanço da situação após a primeira semana, Jeremy Dear, secretário-geral adjunto da Federação Internacional de Jornalistas e responsável por coordenar a resposta de emergência aos profissionais de mídia no país, questionou o “ o que seria o jornalismo baseado nos princípios da lei Sharia (a lei islâmica baseada nos ensinamentos do Alcorão).

Que tipo de jornalismo independente pode haver quando o Talibã diz o que você pode e não pode reportar e quem pode ou não trabalhar?

Combatentes do Talibã pedem tranquilidade… de armas em punho

Uma das evidências da contradição entre teoria e prática neste um ano de controle do Afeganistão pelo Talibã aconteceu duas semanas depois da tomada do poder. 

Combatentes armados entraram no estúdio da TV nacional e obrigaram o assustado apresentador a ler um manifesto pedindo aos espectadores para “não terem medo”. 

 O trecho do programa foi compartilhado pela jornalista e apresentadora do BBC World News Yalda Hakim, que escapou do Afeganistão quando criança com sua família antes de se estabelecer na Austrália.

Hakim descreveu a situação como “surreal” e acrescentou: “É assim que um debate político agora aparece na TV afegã — soldados talibãs vigiando o apresentador”.

Caçada a jornalistas pelo Talibã 

Apesar dos discursos, as perseguições a profissionais de mídia se intensificaram já nos primeiros dias da tomada do poder pelo Talibã, há um ano. 

Um grupo de 100 jornalistas fez um manifesto pedindo ajuda à comunidade internacional um mês após a chegada a Cabul. O título era ““O jornalismo afegão está ameaçado de extinção”.

Mas não adiantou. Houve registro de sequestros, intimidações, assassinatos e até um crime contra um parente de um editor alemão que já tinha deixado o país. 

O caso foi denunciado pela rede Deutsche Welle (DW) em 20 de agosto. O profissional foi caçado em sua residência, mas como não o encontraram, os integrantes do Talibã mataram um de seus parentes e deixaram outro gravemente ferido. 

Outro episódio ocorreu com um fotógrafo afegâo que cobria um protesto. 

“Um dos talibãs colocou o pé na minha cabeça, esmagou meu rosto contra o concreto. Eles me chutaram na cabeça … Achei que eles iam me matar”, relatou o fotógrafo Nematullah Naqdi à Agência France Presse (AFP). 

Fuga do Talibã e pedido de ajuda a ONGs internacionais 

Em 31 de agosto de 2021, a Federação Internacional de Jornalistas contabilizou mais de 2 mil pedidos de auxílio de profissionais de mídia que tentavam fugir do Afeganistão ou obter ajuda para se protegerem, com pelo menos 90 veículos de comunicação fechados. 

Muitos que fugiram para países provisórios não tinham vistos ou passagem para seguir adiante.

Um dos relatos mais dramáticos foi o da premiada jornalista Farida Nekzad, editora-chefe da Pajhwok Afghan News, a maior agência de notícias independente do Afeganistão.

Ela contou à IFJ como foram as horas que passou com a família confinada na capital tomada, a jornada para o aeroporto e a espera para embarcar rumo ao Catar. 

No mesmo voo estavam outros jornalistas conhecidos do país, incluindo muitas mulheres, as mais perseguidas. 

Sob Talibã, mulheres jornalistas em vias de desaparecer 

As violações aos direitos fundamentais das mulheres no Afeganistão, obrigadas a se cobrir e sofrendo restrições para estudar e trabalhar se estenderam às jornalistas do país, como era temido. 

Um primeiro alerta foi dado em um comunicado conjunto da RSF e do Centro de Proteção a Jornalistas Mulheres Afegãs) em 9 de setembro, menos de um mês depois de o Talibã reassumir o poder. 

De um total de 700 jornalistas que atuavam no Afeganistão, apenas 70 seguiam trabalhando. 

“Em outras palavras, mulheres jornalistas estão em vias de desaparecer da capital”.

Elas não foram oficialmente proibidas de trabalhar, mas muitas desistiram diante de ameaças diretas ou de pressões do Talibã junto às organizações de mídia. 

No primeiro pacote de regras, Talibã impõe regras para mulheres 

Em setembro, veio o primeiro pacote normativo, com 11 regras,  incluindo a proibição de matérias contrárias ao Islã e a recomendação de “cuidado” ao publicar notícias não confirmadas pelo governo, o que foi entendido como censura prévia.

Na última semana de novembro de 2021, as normas para o setor audiovisual começaram a ser formalizadas. 

O Ministério da Propagação da Virtude e Prevenção do Vício anunciou que mulheres não poderiam mais aparecer em programas ficcionais (como novelas) ou de entretenimento.

E as apresentadoras de noticiários ficam obrigadas a cobrir a cabeça com o hijab (véu islâmico). No entanto, poucas continuavam no ar.

Além de restringir a presença de mulheres em programas, as novas regras proibiram também a exibição de conteúdo que questione a leis islâmicas. 

“Estas não são regras, mas orientações religiosas”, disse o porta-voz do ministério, Hakif Mohajir, à agência de notícias AFP.

Em 22 de julho deste ano, o líder supremo do Talibã, mulá Haibatullah Akhundzada, emitiu um novo decreto alertando que “difamar e criticar funcionários do governo sem provas” e “difundir notícias e rumores falsos” são proibidos pelo Islã.

E que aqueles que “caluniam” funcionários do governo estão colaborando involuntariamente com o governo. inimigo e será “punido”.

“Este anúncio do mais alto funcionário do Emirado Islâmico é indicativo da determinação de suprimir a liberdade de imprensa no Afeganistão”, disse a Repórteres Sem Fronteiras. 

Jornalistas perdem a vida e mídia encolhe no Afeganistão em 2021

O Afeganistão fechou 2021 empatado com o México como o país onde mais morreram jornalistas, um total de sete. 

A combinação de fatores como perseguição direta, medo, êxodo para outros países e sufocamento financeiro de organizações de mídia no Afeganistão, em uma economia destruída após a volta do Talibã ao poder, provocou o encolhimento do setor. 

Em dezembro de 2021, segundo a Repórteres Sem Fronteiras e a Associação de Jornalistas Independentes Afegãos, 231 veículos tinham fechado no país e 6,4 mil jornalistas haviam perdido o emprego.

A conta de empregos foi mais alta para as mulheres, com estimativa de que mais de quatro a cada cinco delas deixaram a atividade.

A mídia local foi a mais atingida, mas mesmo Cabul perdeu mais da metade de seus órgãos de imprensa.

Além do assédio do Talibã, os proprietários de veículos de imprensa no Afeganistão precisam lidar com restrições econômicas.

Muitos meios de comunicação estavam recebendo financiamentos nacionais ou internacionais, que terminaram quando o grupo extremista assumiu o controle. 

Em fevereiro, quando o novo governo do Afeganistão completou seis meses, a Federação Internacional de Jornalistas classificou a situação de “catastrófica”, não apenas para os jornalistas que perderam o emprego ou fugiram, mas também para o público, privado de informação confiável.

Um levantamento mostrou que apenas 205 dos 623 meios de comunicação que funcionavam nas 33 províncias do país seguia operando, com os jornais impressos sendo os mais afetados. 

Também em fevereiro, uma coletiva de imprensa em que diversas associações de jornalistas fariam um balanço da situação da imprensa no Afeganistão foi suspensa pela polícia, que chegou a prender alguns participantes. 

Correspondentes internacionais na mira do Talibã 

Embora os jornalistas locais sejam os mais afetados pelas violações da liberdade de imprensa no Afeganistão, correspondentes estrangeiros também foram alvo de perseguições. 

Em fevereiro, o jornalista Andrew North, que já foi correspondente de guerra da BBC e estava no Afeganistão a serviço da ONU, passou quatro dias sequestrado por forças do governo, junto com outro profissional de imprensa britânico e dois auxiliares afegãos. 

Andrew North, jornalista, em apresentação no International Journalism Festival (divulgação)

Ele se manifestava regularmente contra o Talibã nas redes sociais e em artigos para a imprensa internacional. 

Na última semana de julho, Lynne O’Donnell, colunista da revista americana Foreign Policy que já tinha dirigido as sucursais das agências de notícias AP e AFP no Afeganistão, voltou ao país para retratar o que chamou de “reinado de terror” com o Talibã no poder. 

Mas ao se credenciar para trabalhar como jornalista, foi detida, recebeu ameaças e só foi libertada depois de tuitar dizendo que reportagens anteriores que fizera sobre atos do Talibã  eram falsas. 

Conteúdo de redes internacionais banido pelo Talibã 

Além de investir contra profissionais estrangeiros, o Talibã também restringiu o acesso de sua população a conteúdo produzido em idiomas locais pelas redes internacionais BBC, DW e Voice Of America (VOA). 

Em março, emissoras locais receberam uma ordem informando que não mais poderiam divulgar os boletins dessas redes. 

A BBC produz informes nos idiomas pashto, persa e uzbeque. A DW tinha um talk show político em dari e pashto, transmitido pelo canal independente ToloNews.

A VOA tinha um boletim diário em pashto e dari produzido cinco dias por semana e distribuído pelo ToloNews e Shamshad TV. 

O veto aconteceu na mesma semana em que pelo menos sete profissionais de mídia afegãos foram detidos e depois libertados, em atos de intimidação. 

Um deles, Mirwais Atal, diretor de uma rádio independente, foi interrogado por seus “ponto de vista feministas”, segundo admitiu o vice-diretor de mídia da Inteligência do Talibã, Jawad Sargar. 

Um balanço no Dia Internacional da Mulher

A intolerância com quem expressa apoio aos direitos femininos no Afeganistão explica a situação das jornalistas mulheres no primeiro ano do novo governo Talibã.

Ela foi documentada pela Federação Internacional de Jornalistas em um relatório divulgado no Dia Internacional da Mulher, em março. 

Os números são dramáticos: 87% das mulheres sofreram discriminação de gênero, e 60% perderam empregos e carreiras. 

Algumas tiveram melhor sorte e conseguiram se reinventar fora do Afeganistão. Uma delas foi reconhecida pela revista Time como uma das Mulheres do Ano, em lista publicada no Dia da Mulher. 

Zhara Joya, de 29 anos, fundou em Londres um site dedicado a registrar as violações aos direitos das mulheres sob o regime Talibã, das quais ela própria foi vítima quando criança.

A solidariedade dos jornalistas homens 

Uma das cenas mais marcantes do jornalismo afegão em um ano de governo do país pelo Talibã foi um protesto silencioso e corajoso. 

Em maio, o Talibã baixou uma norma “final e inegociável” obrigando mulheres a cobrirem o rosto para apresentar telejornais.

Algumas desafiaram a proibição, mas acabaram acatando a fim de continuar trabalhando. 

Mas tiveram a solidariedade de colegas. Âncoras do canal ToloNews apareceram no vídeo usando máscaras de proteção contra a covid-19. 

O mesmo canal denunciou no dia 10 de agosto restrições ao trabalho da imprensa pelo Talibã, que proibiu a captura de imagens. 

Um ano depois, o que sobrou do jornalismo no Afeganistão

De acordo com uma pesquisa da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), em um ano desde que o Talibã assumiu o poder em 15 de agosto de 2021, o Afeganistão perdeu 39,5 9% de seus meios de comunicação e 59,86 % de seus jornalistas, especialmente mulheres jornalistas.

A pesquisa da RSF deixa poucas dúvidas sobre o impacto maciço que a queda de Cabul e a criação do Emirado Islâmico do Afeganistão tiveram na mídia, ressalta o relatório.

O estudo atualizou os dados levantados até então, mostrando que o Afeganistão tinha 547 meios de comunicação antes de 15 de agosto de 2021. Um ano depois, 219 cessaram suas atividades.

E dos 11.857 jornalistas contabilizados antes de 15 de agosto de 2021, existem apenas 4.759 agora. As mulheres jornalistas foram as mais impactadas – 76,19% delas perderam o emprego.

“O jornalismo foi dizimado durante o ano passado no Afeganistão”, disse o secretário-geral da RSF, Christophe Deloire.

“A mídia e os jornalistas estão sendo submetidos a regulamentações iníquas que restringem a liberdade da mídia e abrem caminho para repressão e perseguição.

Em 2012, o Afeganistão ficou em 150º lugar entre 179 países no Índice de Liberdade de Imprensa da RSF.

Em 2021, havia subido para 122º em 180 países graças a um cenário de mídia dinâmico e à adoção de legislação que protege os jornalistas.

E em 2022, depois de perder quase 40% de sua mídia e mais da metade de seus jornalistas, caiu para 156º.

 

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