Londres – Durante os setenta anos seu reinado, a rainha Elizabeth II atravessou mais mudanças tecnológicas e sociopolíticas do que qualquer monarca na história recente, com o público cada vez mais influenciado pelo alcance crescente da mídia.

No sétimo dia de sua morte, em 8 de fevereiro, a sucessão na monarquia britânica segue dominando o noticiário da imprensa e conversas nas redes sociais, alimentados por uma sucessão bem organizada de eventos com alto potencial midiático – de cortejos solenes a visitas dos familiares a tributos feitos pelos admiradores da rainha. 

Ao sair de cena, Elizabeth II deixou o famoso plano Operação London Bridge pronto, com cada passo das cerimônias cuidadosamente pensado para assegurar apoio ao rei Charles II e à instituição monarquia. 

Espetáculo de mídia: coroação da rainha Elizabeth foi a primeira televisionada

Autora do livro “Running The Family Firm: How the monarchy manages your image and our money” (Como a monarquia gerencia sua imagem e seu dinheiro) , a professora Laura Clancy analisa como a rainha Elizabeth II foi eficiente em se adaptar à evolução radical da mídia durante seu reinado, da popularização da televisão às redes sociais, tornando-se um ícone comparável a poucas figuras públicas contemporâneas. 

Por causa disso, observa a professora, “agora temos mais acesso à monarquia do que nunca”. A cobertura da imprensa sobre a morte é prova disso. Mas nem tudo é exposição. 

Para se proteger, explica ela, a rainha e a monarquia sempre buscaram um equilíbrio cuidadoso entre visibilidade nos eventos para reforçar sua imagem e invisibilidade do funcionamento interno para evitar ou amenizar danos.

Quando a rainha Elizabeth assumiu o trono britânico em 1952, a 2ª Guerra Mundial tinha acabado há apenas sete anos, e o Reino Unido vivia um racionamento de produtos essenciais, que só viria a terminar no ano seguinte, como recorda Clancy em um artigo no portal acadêmico The Conversation. 

Nesse contexto, não é de se admirar, explica a professora, que a coroação de uma jovem tenha gerado a expectativa de dias melhores e sido saudada como a “nova era elisabetana”, em alusão ao reinado de Elizabeth I.

Uma oportunidade única para a popularização da nova tecnologia da época, a televisão.

Num primeiro momento, conta Clancey, o então primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, reagiu negativamente às propostas de transmissão da cerimônia ao vivo.

No livro, a professora relata que Churchill achava que “arranjos mecânicos modernos” prejudicariam a magia da coroação e “aspectos religiosos e espirituais [não] deveriam ser apresentados como se fossem um espetáculo teatral”. 

Apesar dessas preocupações, a transmissão foi um grande sucesso. A autora do livro cita a pesquisa “Mídia e Memória no País de Gales”, que revelou que a coroação marcou vividamente as primeiras memórias da televisão dos britânicos.

Ao se tornar rei, Charles III avançou mais ainda, com as câmeras autorizadas a transmitir ao vivo a reunião do Conselho de Adesão que o proclamou rei. 

Mas riscos existem. Um momento de descuido viralizou nas redes sociais, revelando a irritação do monarca com uma bandeja de canetas sobre a mesa onde assinaria o juramento. O mesmo viria a acontecer dias depois, com uma segunda exasperação captada pelas câmeras.

Um dos pontos altos do uso da mídia pela rainha Elizabeth era seu discurso de Natal, transmitido em rede nacional às 15h do dia 25 de dezembro. A tradição começou no início do século passado na era do rádio, tornou-se regular com o pai da monarca, o rei George VI, e foi seguida por ela desde que subiu ao trono. 

Mas foi a monarca que exibiu a mensagem na TV pela primeira vez, em 1957, chamando o momento de “um marco”. E disse esperar que aquela nova mídia “fizesse sua mensagem mais pessoal e direta”. A história mostrou que ela estava certa e sua aposta. 

A antenada rainha chegou a gravar uma mensagem de Natal em 3D, em 2012. 

Divulgação The Royal Family

Busca do equilíbrio na relação com a mídia 

A professora Laura Clancey acredita que a busca pelo equilíbrio entre o que deve ou não ser divulgado foi uma preocupação constante da rainha Elizabeth ao longo de todo o seu  reinado.

Um bom exemplo, conta ela, é o documentário “Família Real” das redes BBC e ITV realizado em 1969.

O projeto usou as novas técnicas de “cinema verdade”, com as câmeras acompanhando os membros reais por um ano, no que hoje seria reconhecido como um reality show.

O documentário, de 90 minutos, apresentou momentos íntimos de cenas domésticas, como churrascos em família e a rainha levando o filho Edward a uma loja de doces.

“Se por um lado foi um sucesso, por outro suscitou a preocupação de a exposição excessiva ter prejudicado a mística da monarquia.”

Essa preocupação em não tornar visível o que deveria permanecer invisível viria a se agravar a partir da década de 90, com o advento da cultura das celebridades. As entrevistas abordando assuntos íntimos passaram a ser o grande tormento da monarquia.

A acadêmica aponta a entrevista da princesa Diana ao programa Panorama da BBC em 1995 como icônica. Nela, Diana falou sobre adultério real, conspirações do palácio contra ela e a deterioração de sua saúde.

Mais recentemente, Laura destaca a entrevista do príncipe Harry e de Meghan Markle a Oprah Winfrey. O casal abordou o que descreveram como racismo dentro da família real, a rejeição a Markle e o descaso à saúde mental de Harry.

Para Laura, esses episódios romperam drasticamente o equilíbrio desejado entre visibilidade e invisibilidade, expondo de forma crua o funcionamento interno da família que deveria ser mantido longe dos olhos do público.

Elizabeth, a rainha que virou ícone da mídia 

A professora explica que mesmo tendo sido a pessoa mais representada da história do Reino Unido, com seu rosto presente por sete décadas nas cédulas utilizadas pelos britânicos, Elizabeth II nunca incorporou uma “persona” como outros membros da realeza, que iniciaram uma relação de amor e ódio com o público depois que este passou a saber mais sobre eles.

Ao contrário, Elizabeth II vivenciou como chefe de Estado as mudanças políticas, sociais e culturais mais importantes dos séculos 20 e 21, e, fiel ao seu papel constitucional, raramente deu uma opinião política.

Para Clancey, isso garantiu que a rainha permanecesse como um ícone. 

Mas isso não significa que não tenha passado por crises. 

No fim da década de 90, ressalta ela, a jovem rainha da coroação era uma mulher mais velha. E a princesa Diana era a “princesa do povo” da época, com uma marca de “autenticidade” que ameaçava expor uma monarquia “fora de alcance”.

Em 2000, três anos após a morte de Diana em um acidente de carro em Paris, o apoio à monarquia estava em seu ponto mais baixo. A reação da rainha foi criticada.

A ponto de um jornal, lembra a autora, estampar a manchete “Mostre-nos que você se importa: os enlutados pedem que a rainha lidere nossa dor”.

No final, a rainha fez uso de novo da televisão, desta vez com um discurso que atenuou as críticas, enfatizando seu papel como avó ocupada em ajudar William e Harry a lidar com sua dor:

“Também vimos esse papel de avó em outras ocasiões, como nas fotos de divulgação de seu aniversário de 90 anos, cercada por netos e bisnetos.

Esta é a imagem da rainha que muitos vão se lembrar: uma mulher mais velha, vestida impecavelmente, segurando sua bolsa icônica e familiar.”

A pandemia que paralisou interações sociais foi também um obstáculo para a visibilidade da família real, impedida de realizar viagens e compromissos oficiais que rendiam espaços generosos na mídia. 

Mas Elizabeth rapidamente se adaptou ao novo momento, e como boa parte do mundo, passou a participar de conversas via Zoom. Em uma das mais populares, usou sua influência para convencer a população a se vacinar contra o coronavírus, em um momento em que muitos questionavam riscos da vacina.

A preocupação com a nova era e a nova geração

Como a maioria das pessoas e das instituições em todo o mundo, a monarquia  tem sites bem elaborados e contas nas principais plataformas de mídias sociais.

A estreia foi em 2014, no Twitter, quando a monarca abriu a exposição Era da Informação, no Museu de Ciências de Londres – quem melhor para a tarefa? 

A professora destaca a conta no Instagram administrada em nome do príncipe William, Kate Middleton e seus filhos, como o exemplo mais óbvio na era contemporânea dessa relação visível x invisível perseguida pela família real desde o início do reinado de Elizabeth.

Todas as fotografias postadas parecem naturais, improvisadas e informais, e o Instagram é enquadrado como o “álbum de fotos da família” , permitindo aos súditos a percepção de que estão vendo cenas “íntimas” da vida familiar. 

No entanto, Laura Clancey ressalva que, como em todas as representações reais, essas fotografias são encenadas com precisão.

Ela considera que as mídias sociais ampliaram os públicos da monarquia, que passou a ter acesso a uma geração mais jovem que é mais propensa a rolar fotos reais em aplicativos de telefone do que ler jornais. Ela pergunta:

“Como esta geração responderá à morte do monarca?”

A primeira pesquisa feita depois da morte da rainha Elizabeth apontou aumento na popularidade do rei Charles, certamente influenciada pela cobertura favorável da mídia.

Mas os jovens são os que menos confiam que ele será um bom rei. E os que menos acham que a figura dele é unificadora do país.