Londres – Em uma decisão recebida com alívio por entidades de direitos humanos e defesa da liberdade de imprensa, a jornalista filipina Maria Ressa, detentora de um prêmio Nobel da Paz, foi inocentada nesta quarta-feira (18) em quatro dos sete processos movidos pelo governo das Filipinas contra seu jornal, o Rappler.
A resistência ao assédio judicial iniciado na gestão do ex-presidente Rodrigo Duterte tornou Ressa um símbolo de luta contra a censura e valeu a ela o Nobel da Paz de 2021, dividido com o jornalista russo Dmitry Muratov.
A decisão do Tribunal de Recursos Fiscais das Filipinas (CTA, na sigla em inglês) aplica-se a três casos de suposta falha em fornecer informações precisas sobre investimentos, e o quarto era uma acusação de evasão intencional de impostos.
Caso perdesse as causas, ela estaria sujeita a até 34 anos prisão e multa substancial, segundo o Centro de Proteção a Jornalistas (CPJ).
Nobel não reduziu a pressão sobre a jornalista
Ressa, o jornal digital Rappler e jornalistas do veículo enfrentam uma campanha sustentada de perseguição legal e violência online, com 23 processos individuais abertos pelo Estado contra eles desde 2018.
O Nobel da Paz não fez a pressão diminuir.
Em junho de 2022 o Rappler recebeu oficialmente uma ordem de fechamento Foi a primeira vez em que isso aconteceu na mídia filipina. O veículo tenta reverter a decisão.
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Ressa ainda pode ser sentenciada a quase sete anos de prisão em um processo por crime de difamação cibernética, que está atualmente em seu último ciclo de apelação perante a Suprema Corte das Filipinas.
Em entrevista à agência de notícias France-Presse, ela contou que mantém uma mala pronta e pacotes de dinheiro vivo para o caso de ser presa e ter que pagar fiança. A redação do Rappler recebe treinamento e faz simulações de batidas policiais.
Apesar de as ameaças pessoais e ao seu jornal ainda não terem sido totalmente afastadas, na saída do tribunal a jornalista se mostrou feliz e aliviada com o resultado.
Em um vídeo postado pelo Rappler, Ressa não segurou as lágrimas disse que o veredito era uma vitória dos fatos, da verdade e da justiça.
“As acusações eram politicamente motivadas, representavm abuso de poder e tinham como objetivo impedir o jornalismo.
A vitória não é apenas do Rappler, mas sim de cada filipino que alguma vez tenha sido acusado injustamente.
É num raio de luz e de esperança.”
De que o Rappler foi acusado
Em nota, o Rappler explicou que a acusação feita pelo governo Duterte era de evasão de impostos quando levantou capital para a empresa por meio de um instrumento financeiro frequentemente usado no país chamado Philippine Depositary Receipts ou PDRs.
A empresa acusada é a Rappler Holdings Corporation (RHC), holding da subsidiária Rappler Inc., a empresa jornalística.
Ela teria atuado como negociante de valores mobiliários, obtido renda tributável como resultado e deixado de pagar os impostos devidos.
Os advogados do veículo disseram que é a primeira vez em pelo menos 20 anos que a autoridade fiscal (Bureau of Internal Revenue, BIR) das Filipinas interpretou PDRs como receita tributável e a primeira vez que uma empresa de mídia foi acusada de sonegação de impostos sobre PDRs que outras empresas de mídia proeminentes locais como ABS-CBN e Rede GMA também usam.
A sentença do CTA favorável à Maria Ressa tem 81 páginas. Foi escrita pela juíza Catherine Manahan e endossada pelos dois outros juízes responsáveis pela análise do caso.
A CTA entendeu que a RHC não agia como negociante de valores mobiliários porque o código tributário define um negociante como alguém regularmente engajado em tal atividade.
E acrescentou que “a emissão de PDRs foi feita de acordo com um propósito comercial legítimo, ou seja, levantar capital para sua subsidiária Rappler Inc., o que é consistente com um dos propósitos da RHC como holding”.
A sentença afirma que a holding não obteve receita comercial com a operação. E concluiu que os elementos imputados sob o código fiscal não estão presentes [na acusação]”.
Mobilização pela jornalista após Nobel
O movimento para silenciar Maria Ressa envolve também assédio online e ameaças de morte a ela e aos profissionais que trabalham no Rappler.
Em 2018, o site de notícia recebeu uma primeira ordem de fechamento, mas decidiu resistir. Ressa contou que reuniu a equipe e se ofereceu para ajudar os que quisessem sair a encontrar novos empregos, mas todos decidiram ficar.
A intensidade do assédio judicial a Maria Ressa a visibilidade para o caso depois que ela recebeu o Nobel da Paz motivaram a criação da Hold The Line, uma coalizão de entidades de liberdade de imprensa e de expressão para defender a jornalista.
“Este veredito indica que é possível para o presidente Ferdinand Marcos Jr. reverter a vasta campanha de repressão à mídia de seus predecessores”, disse o Comitê Diretivo da coalizão.
“Esperamos estar vendo o começo do fim da estratégia do governo anterior de instrumentalizar os tribunais para minar as empresas de jornalismo independentes e prejudicar a credibilidade dos jornalistas.
Como próximo passo imediato, pedimos que todos os processos judiciais restantes contra Rappler e Ressa sejam encerrados a perseguição seja interrompida de uma vez por todas”.
A ONG instou o governo Marcos a “virar a página na abordagem do governo Duterte para intimidar a mídia independente, que incluiu ameaças de retirar licenças de grupos de mídia ou ferir seus interesses comerciais para encorajar a autocensura ao fazer reportagens sobre questões delicadas”.
Maria Ressa tem passaporte americano, mas disse em entrevista à AFP que não deixaria o país para evitar processos.
O assédio judicial não é o único problema do jornalismo nas Filipinas. O país é o quinto em número de mortes de profissionais de imprensa nos últimos 20 anos, segundo levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras. O Brasil ocupa a nona posição.
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O caso mais recente foi o de Percival Mabasa, mais conhecido como Percy Lapid, um dos mais populares jornalistas do país, cuja morte chegou a provocar manifestações. Ele foi assassinado com um tiro na cabeça em outubro.
Um mês depois da morte, o Ministério da Justiça das Filipinas indiciou o chefe do serviço penitenciário do país como mandante do crime.
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O assédio ao outro vencedor do Nobel
Enquanto Maria Ressa vem conseguindo manter seu jornal funcionando, o russo Dmitry Muratov não teve a mesma sorte.
O Novaya Gazeta, que ele fundou, foi um dos alvos da lei de fake news imposta por Vladimir Putin depois da invasão da Ucrânia e acabou perdendo a licença para funcionar.
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Um grupo de profissionais exilados lançou uma versão europeia do jornal, que segue operando com o apoio de fundos internacionais para jornalistas que deixam seus países devido a perseguições políticas.
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