Por Luciana Gurgel | MediaTalks, Londres
Em um relatĆ³rio publicado em julho pela International News Media Association analisando os efeitos do trabalho em casa sobre a imprensa, a jornalista e pesquisadora americana Mary Meehan aponta uma necessidade que talvez ainda nĆ£o esteja no radar de todas as organizaƧƵes: processos de RH para lidar com situaƧƵes advindas dessa nova realidade.
Ela cita o exemplo de um jornalista espanhol que fazia um video por Zoom quando uma mulher quase nua passou atrĆ”s da cĆ¢mera.
E pergunta:
āPor ser um problema que raramente acontece numa redaĆ§Ć£o, Ć© preciso criar novas polĆticas para lidar com ele?ā.
Mas o caso ā que provocou um novelesco debate sobre se Alfonso Melros traĆa a mulher com a quase-pelada, tambĆ©m jornalista ā nĆ£o Ć© nada perto do que viria a se abater sobre a The New Yorker.
Ao ser flagrado masturbando-se durante uma reuniĆ£o interna via Zoom, o jornalista da revista Jeffrey Toobin virou dor de cabeƧa para o RH da CondĆ© Nast, que nĆ£o deve ter seguido o conselho de se preparar para desastres assim. Uma suspensĆ£o sĆ³ veio quando o Vice revelou o caso, em 19/10, quase uma semana depois de Toobin ter sumido das redes sociais.
Quanto mais alto o voo, maior a queda
Advogado formado em Harvard, ele protagonizou coberturas jurĆdicas cĆ©lebres, como a do julgamento do atleta O.J.Simpson, transformado no livro que deu origem Ć sĆ©rie. AlĆ©m de afastado da New Yorker, teve que se licenciar da CNN, onde Ć© (ou era?) analista-chefe de assuntos legais. E pode vir mais.
Segundo o Motherboard, site de tecnologia do Vice, a New York Public Radio (que tinha profissionais na tal reuniĆ£o) vetou Toobin em seus programas. O Doubleday, selo da Ramdon House que publicou seu Ćŗltimo livro, uma investigaĆ§Ć£o sobre Donald Trump, nĆ£o quis se manifestar sobre o futuro do autor.
Mesmo que os publishers perdoem, ele jĆ” foi condenado pelas redes sociais. A hashtag #meToobin foi a pĆ” de cal, associando o escĆ¢ndalo a assĆ©dio sexual e moral. AtĆ© O.J.Simpson tirou uma casquinha, ironizando seu ex-carrasco em um video no Twitter,assistido por mais de 2 milhƵes de pessoas.
āNĆ£o basta apenas mandar as pessoas para casaā
Independentemente do destino da mais nova vĆtima do Zoom, o episĆ³dio expƵe uma das consequĆŖncias do trabalho remoto, que sem aviso prĆ©vio tirou boa parte dos jornalistas das movimentadas redaƧƵes para os isolar em seus casulos.
NĆ£o Ć© seguro afirmar que Jeffrey Toobin tenha cometido o deslize por causa da pandemia. Poderia ter acontecido em outros tempos. Mas a frequĆŖncia com que profissionais (nĆ£o apenas jornalistas) passaram a interagir com colegas pelas telas, muitas vezes sem processos nem reflexĆ£o sobre como se posicionar, eleva os riscos a um outro patamar.
No relatĆ³rio, Mary Meehan faz um alerta importante: nĆ£o basta mandar as pessoas para casa. Ela descreve a necessidade de sistemas adequados. Um dos pontos destacados Ć© a infraestrutura, jĆ” que a desigualdade nos equipamentos pode levar a situaƧƵes de desvantagem.
O documento chama tambĆ©m a atenĆ§Ć£o para procedimentos legais, com recomendaƧƵes apresentadas em seminĆ”rio promovido pela Americaās Newspapers. A lista inclui aspectos trabalhistas e mecanismos para assegurar a confidencialidade diante de conexƵes domĆ©sticas nĆ£o seguras e risco por descarte inadequado de documentos.
A autora aborda ainda os efeitos sobre a saĆŗde emocional. Ela afirma que a cultura tradicional da redaĆ§Ć£o deve mudar. E que apoio psicolĆ³gico e empatia serĆ£o necessĆ”rios em escala maior. VĆ”rios estudos tĆŖm mensurado o impacto da pandemia sobre o estado de espĆrito dos profissionais de imprensa, alguns apontando que Ć© mais alto do que na mĆ©dia da populaĆ§Ć£o.
Trabalhar em casa nĆ£o foi uma opĆ§Ć£o para a maioria dos jornalistas, profissionais de comunicaĆ§Ć£o e de tantas outras Ć”reas de negĆ³cio. A probabilidade de que uma vacina milagrosa devolva todos rapidamente Ć s suas estaƧƵes de trabalho e ao cafezinho amigo nĆ£o parece realista.
A nova realidade estĆ” mostrando que hĆ” um preƧo a pagar. HĆ” muito dever de casa ā literalmente ā a ser feito para tirar dela o melhor e amenizar seus riscos, que nĆ£o sĆ£o poucos.