Londres – A notícia de que a edição de novembro da revista “Superman: Son of Kal-El #5” apresentará o filho de Clark Kent e Lois Lane como bissexual ganhou as manchetes pelo mundo, pelo poderoso recado que representa para a representatividade LGBTQ+ na mídia. 

Mas Joe Kent não é o primeiro a sair do armário e desafiar preconceitos. Em 2019, o Aquaman agitou o universo dos super-heróis ao beijar   Wynnde, um homem atlante. Em agosto passado, o Robin das histórias em quadrinhos do Batman se declarou bissexual.

Essa tendência de inclusão nas animações ao longo dos últimos anos foi mapeada pelo site Insider, que em junho passado criou o primeiro banco de dados de personagens LGBTQ+ em desenhos já compilado, demonstrando que ela vem de mais longe. 

O levantamento, que pesquisou produções exibidas desde os anos 80, encontrou 259 personagens LGBTQ+. O primeiro da lista é o Esqueleto, de SuperTed, uma série britânica sobre um urso de pelúcia com superpoderes, que foi ao ar no Disney Channel em 1983. 

Mas a vida não foi fácil para o pioneiro. Segundo o Insider, Esqueleto foi também o que levou mais tempo para ter a sexualidade confirmada pelos produtores, sendo declarado gay por seus criadores apenas em 2014.

Movimento cresce a partir de 2010

A pesquisa classificou os personagens por programa, rede, gênero,  sexualidade e também por deficiência. Inclui alguns cujo gênero foi explicitamente abordado, e outros que mais tarde foram confirmados fora da tela por seus criadores.  

Muitas vezes isso aconteceu por meio de entrevistas ou de postagens nas redes sociais, e não diretamente na apresentação formal dos programas e séries, como fez a Marvel com o filho de Clark Kent. 

Segundo a pesquisa da Insider, na década de 2010, a representação começou a aumentar, com sete programas em 2014 apresentando personagens LGBTQ +, 12 em 2018 e 26 em 2020. 

Velma e a namorada 

Em 2010, Velma, de Scooby-Doo, teve a sexualidade “revelada” ao aparecer com uma namorada. Depois dela, mais personagens surgiram, alguns chegando a ocupar o papel central das animações.

No retorno de um ícone dos 80 e herói da comunidade gay, He-Man, a Netflix não mostrou intenção de abordar a sexualidade do personagem, que permanece um mistério.

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Já no remake de She-Ra, um derivado do mesmo universo, que começou em 2018 e teve cinco temporadas, duas princesas lésbicas se beijaram na tela na cenal final, em 2020.

A personagem Catra confessou seu amor por Adora, que admitiu que os sentimentos eram correspondidos. Elas trocam um beijo antes de Adora se transformar em She-Ra mais uma vez.

Nem todos aderiram 

No entanto, a quantidade não significa que todos os criadores ou estúdios aderiram à ideia. O relatório mostra que dos 62 dos 259 personagens apresentados, quase um quarto foram de apenas dois programas: Steven Universe e She-Ra. 

Steven Universe , criado por Rebecca Suger, que não é binária, lidera a contagem, com 39 personagens. Em seguida vem She-Ra, da também não não binária Noelle Stevenson, que incluiu em suas criações 23 personagens queer.

O Insider fez um vídeo explicando o relatório.

Acesso limitado 

O banco de dados do Insider revelou que a maior parte dessa representação está escondida atrás de acesso pago no Estados Unidos, o que pode se estender para o outras partes do mundo, já que muitos são exibidos por canais fechados.

O levantamento identificou que mais de 90%, ou exatamente 234 desses personagens, exigem TV a cabo, streaming ou assinatura de internet para vê-los. Isso significa que crianças cujas famílias não podem pagar TV paga ou internet praticamente não têm acesso a eles. 

AnneMarie McClain, uma pesquisadora de mídia e educação infantil da Universidade de Wisconsin-Madison, disse ao Insider que programas inclusivos são essenciais para crianças, independentemente das diferenças de renda. 

“As crianças podem não ter representação em suas comunidades. Elas podem não ter representação em suas escolas. A mídia é uma fonte de representação que pode ajudar as crianças a saberem que estão bem e que suas identidades são válidas”, disse McClain. 

Representação é bom negócio para a indústria 

Ser mais inclusivo não é apenas socialmente elogiável, mas pode dar lucros. Um estudo feito pela consultoria Accenture para o  Fórum Econômico Mundial a partir de pesquisas internacionais, sendo a maior parte de origem americana, mostrou que “a ética e os lucros são as duas faces da mesma moeda”. 

A pesquisa revelou que filmes que carecem de representação autêntica e inclusiva apresentam desempenho inferior em cerca de 20% de seu orçamento na bilheteria do fim de semana de estreia. 

Na publicidade, 64% dos consumidores consultados em um estudo do Google disseram que pensaram em comprar ou fizeram uma compra depois de ver um anúncio que consideraram diverso ou inclusivo. 

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Caminho sem volta

O risco de reação negativa de anunciantes ou do público pode ter adiado alguns passos.

Mas após décadas de mensagens implícitas, a indústria de animação mostra ter superado o medo de sofrer cortes de publicidade e sanções caso levasse às crianças personagens LGBTQ+. A iniciativa da Marvel é mais uma prova da tendência observada no estudo do Insider. 

Contudo, a representatividade esbarra nos debates atuais de especificidade, uma vez que a maioria dos personagens fica nas definições gay/lésbica, sem abordar de forma clara assexualidade ou o universo transgênero.

“Nós precisamos ter representatividade LGBTQ nos desenhos animados porque crianças LGBTQ existem, e elas merecem se ver na tela, merecem ver felicidade e romance como uma representação do que elas sentem”, afirma Melanie Kohen, professora de retórica e estudos de mídia no Lewis & Clark College, universidade localizada em Portland (EUA), em entrevista ao Insider.

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Ocorrência de personagens cresce, mas lugar ainda não é de destaque

Apesar das barreiras rompidas, a análise do Insider mostrou ainda que personagens LGBTQ, quando claramente definidos, são em maior parte figuras ocasionais nas séries animadas de que participam, e não protagonistas como Joe Kent.

Em 70 desenhos listados, 22 têm como atração principal um personagem de perfil diverso.

A nova geração de desenhos vem fazendo uma reparação também no lugar de vilanização que figuras com traços LGBTQ recebiam. Praticamente desde o surgimento das animações, personagens afeminados, crossdressers, eram colocados como figuras excêntricas, perturbadas, más ou, no mínimo, engraçadas.

Isso acontece também na propaganda, com reações cada vez mais negativas. Na Espanha, um anúncio do chocolate Snickers teve que sair do ar por ser considerado homofóbico, mostrando um gay que se transformava em homem depois que a fome era saciada. 

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Steven Universo e Kipo, desenhos animados históricos

“Se você só pode existir como um vilão ou um personagem cômico, é algo muito pesado para lidar de forma repetida quando se é uma criança”, afirma a animadora Rebecca Sugar, criadora do desenho Steven Universo, exibido pelo canal Cartoon Network.

A criação de Sugar é considerada histórica. Seu herói é um garoto não identificado com gêneros e seus amiguinhos são alienígenas não-binários, e dois deles vivem um amor consumado em casamento, que foi ao ar em episódio exibido em 2018.

Benson, personagem da série animada Kipo e os Animonstros, foi o primeiro personagem a se definir como gay em um diálogo de desenho animado, em 2020. 

A naturalidade de Benson choca por revelar justamente a maior dificuldade dos desenhos e da sociedade: tratar opções de gênero e sexualidade com naturalidade. O recurso de usar personagens alienígenas ou fantásticos mantém aceso o debate sobre representar o LGBTQ como exótico.

Joe Kent, bissexual e socialmente engajado 

Críticas à parte, os números mostram que a inclusão não é tendência, mas uma realidade que Joe Kent vem agora confirmar. 

Na apresentação da nova edição, a Marvel explicou que assim como seu pai, ele tambérm se apaixonou por um repórter, Jay Nakamura. Ele é um um hacker de computador e ativista que admira a mãe de Superman, a jornalista Lois Lane.

E antecipa que “após uma cena em que Superman se exaure mental e fisicamente por tentar salvar a todos que puder, Jay estará lá para cuidar do Homem de Aço”, com direito a um beijo. 

“Atualmente, cada vez mais pessoas podem se identificar com o super-herói mais poderoso das HQs”, disse Tom Taylor, autor da série, ao apresentar o roteiro.

A contemporaneidade não está só no relacionamento com Jay. Na saga “Filho de Kal-El”, Jon Kent luta contra várias injustiças sociais, que vão desde os incêndios florestais até os protestos contra a deportação de refugiados. 

Ao explicar a opção por causas mais atuais, Taylor disse:  

“A questão para Jon (e para nossa equipe criativa) é: pelo que um novo Super-Homem deve lutar hoje? Um Super-homem de 17 anos pode lutar contra robôs gigantes enquanto ignora a crise climática?

Claro que não. Alguém com supervisão e super audição pode ignorar as injustiças além de suas fronteiras? Ele pode ignorar a situação dos requerentes de asilo? “

Novos tempos para os quadrinhos também quanto aos inimigos enfrentados pelos heróis. 

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