Quando comecei a trabalhar como jornalista, nos ventos da redemocratização, ouvi mais de uma vez em redações: colocar indígenas na capa “não vende”.
As fotos caíam bem nas edições de domingo, mas reportagens sobre indígenas eram esporádicas, desconectadas das manchetes, com acento no exótico e na suposta intrepidez do jornalista que chegou ao “Brasil profundo”, expressão reveladora de como os meios de comunicação se relacionavam com a maior parte do país e suas populações.
Havia casos pontuais, em que se investigava crimes contra lideranças indígenas, quase sempre por iniciativa dos próprios repórteres.
Problemas sociais e ambientais não eram retratados
Mas a situação permanente de violência contra indígenas e comunidades tradicionais, aliada ao desmatamento e à invasão de terras por grandes projetos governamentais, empresas ou por fazendeiros de outras partes do país não era retratada.
Menos ainda se cobria a dimensão do colapso ecológico que nos traria à atual situação de emergência climática, impossível de ignorar neste ano, o mais quente da história.
Não custa lembrar: o desmatamento é responsável por metade das emissões de gases de efeito estufa no país.
E é nas terras indígenas que o desmatamento é menor, incluindo na comparação com parques e reservas nacionais, apesar das invasões.
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Cobertura da Amazônia impulsionada pela mídia digital
A cobertura jornalística da Amazônia, dos conflitos no campo, e do colapso ecológico só passou a ser feita de forma sistemática no país depois do surgimento da mídia digital.
Não é coincidência que as organizações pioneiras nesse campo, como a Repórter Brasil e a Agência Pública, fundada em 2011, estejam também entre as primeiras a investigar esses temas.
No nosso caso, lançamos o projeto Amazônia Pública em 2012 e continuamos nessa cobertura, que cresceu à medida que as questões se mostram mais relevantes – tivemos duas jornalistas cobrindo a COP em Dubai.
Geradas no momento em que a Internet mostrava sua potência na quebra das hierarquias da informação e a troca entre profissionais da imprensa de diversos países se intensificou, as organizações de mídia digital libertaram o jornalismo de preconceitos e orçamentos encurtados pela crise dos anunciantes, buscando novas fontes de recursos para fazer reportagens em campo demoradas e custosas.
Também aproximou os jornalistas dos anseios reais do público, ou de parte significativa das novas gerações.
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Como explicar, por exemplo, que depois de décadas sofrendo violência ignorada pelos jornais, os Guarani-Kaiowá receberiam em peso a solidariedade dos usuários do Facebook, que em janeiro de 2013 se tornaram ‘sobrenome’ de milhares deles?
As pessoas queriam, sim, falar de Amazônia, indígenas, desmatamento, conflitos. E ninguém mais estava preocupado com as capas dos veículos impressos.
No novo ecossistema de informações, também os ativistas e as próprias comunidades ganharam voz, com o surgimento de mídias regionais – como o site Amazônia Real, o Observatório do Clima, e tantos outros.
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Impacto sobre a mídia tradicional
Isso impactou as pautas da mídia tradicional, acostumada a investigar obras públicas apenas do ponto de vista da corrupção e dos impactos econômicos, com fontes do governo e instituições.
A mídia digital “empurrou” a pauta dos impactos ambientais das grandes obras na Amazônia, trouxe a voz das comunidades tradicionais na preservação e apontou a relação da violação dos direitos dessas populações com o colapso global.
As populações dos países reunidos em Dubai só têm a ganhar com a democratização da comunicação e a qualificação do debate público.
Do calor das notícias da mídia tradicional ao aprofundamento da informação pelos novos meios, o que importa mesmo é que todos “olhem para cima” e conversem.
Talvez então seja possível compartilhar “ideias para adiar o fim do mundo”, como nos ensina Ailton Krenak.
Este artigo faz parte de um relatório especial analisando as repercussões da COP28, jornalismo ambiental, ativismo e percepções da sociedade sobre as mudanças climáticas
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