Por Luciana Gurgel | MediaTalks Londres 

Publicado originalmente em Jornalistas&Cia / Portal dos Jornalistas 

Enquanto os meios jornalĂ­sticos e jurĂ­dicos britĂąnicos acompanham os desdobramentos do processo movido por Megan Markle contra o Mail on Sunday por causa da publicação de uma carta por ela enviada ao pai, que pode estabelecer jurisprudĂȘncia para casos semelhantes, outra controvĂ©rsia envolvendo prĂĄticas da imprensa movimentou o paĂ­s semana passada. SĂł que desta vez o protagonista nĂŁo foi um tabloide sensacionalista, e sim o Financial Times, que teve um repĂłrter pego com a boca na botija ao infiltrar-se em uma conferĂȘncia via Zoom reunindo equipe de funcionĂĄrios do The Independent para tratar de cortes de pessoal.

O episĂłdio coloca em pauta vĂĄrias questĂ”es importantes. Uma Ă© o risco a que indivĂ­duos e corporaçÔes estĂŁo submetidos ao utilizar serviços de conferĂȘncia online, tĂŁo necessĂĄrios nesses tempos de pandemia. Foi mais uma evidĂȘncia de que nĂŁo hĂĄ segurança plena nesse tipo de comunicação, sujeita ao chamado “Zoom bombing”.

Vårias empresas e organizaçÔes jornalísticas jå trocaram o Zoom por ferramentas mais confiåveis. Ainda assim todo cuidado é pouco com temas sigilosos, pois os riscos, ainda que reduzidos, existem.

Vale tudo pelo furo? – A histĂłria tambĂ©m faz refletir sobre a delicada fronteira entre atitudes individuais de um profissional e a reputação da organização que representa. E sĂł reforça a necessidade de vigilĂąncia estreita sobre os padrĂ”es de conduta, para que um deslize nĂŁo estrague uma imagem bem construĂ­da.

E que imagem! O Financial Times dispensa adjetivos. Sua excelĂȘncia levou Ă  conquista inĂ©dita do tĂ­tulo mĂĄximo do British Press Awards por dois anos consecutivos. É fora de questĂŁo imaginar que a atitude do repĂłrter tenha contado com apoio da direção, diferentemente do caso clĂĄssico do News of The World hĂĄ alguns anos.

Mark Di Stefano, australiano, fora contratado em janeiro, vindo do Buzzfeed, para cobrir assuntos de mĂ­dia em Londres. A Ăąnsia pelo furo, tentando descobrir em primeira mĂŁo os planos da empresa que edita o Evening Standard e o Independent, acabou custando-lhe o emprego.

Ele chegou ao extremo de publicar a notĂ­cia sobre os cortes na equipe em sua conta no Twitter ao mesmo tempo em que a equipe do jornal estava sendo informada. Mas a alegria durou pouco. Foi suspenso, e na Ășltima sexta-feira (1Âș/5) apresentou a demissĂŁo.

Pela ingenuidade, atĂ© que foi merecido. Tendo recebido o link de alguĂ©m do jornal, entrou na conferĂȘncia com sua prĂłpria identidade – que apareceu na tela – sem ativar o vĂ­deo. Depois de alguns minutos, talvez alertado por algum amigo, desconectou-se e voltou a conectar com outro telefone, sem nome.

Mas esqueceu que estava lidando com uma plateia de jornalistas tĂŁo – ou mais – espertos do que ele, que foram atrĂĄs e comprovaram que aquele nĂșmero tambĂ©m era dele. Para piorar, o nĂșmero foi identificado como o que tambĂ©m entrara em uma conferĂȘncia do Evening Standard, editado pelo mesmo grupo.

O Financial Times nĂŁo pestanejou em assumir a culpa. Pediu desculpas ao concorrente, que decidiu nĂŁo tomar outras atitudes. Mas nĂŁo hĂĄ dĂșvidas de que a situação deixa uma mancha em uma trajetĂłria de seriedade.

Que pode se agravar, caso se confirme uma notĂ­cia publicada em 30/4 pelo Daily Telegraph, dando conta de que um editor do FT em Nova York estaria respondendo a um processo disciplinar devido a acusaçÔes de plĂĄgio. O jornal parece estar vivendo um inferno astral, ainda que venha entregando uma elogiada cobertura sobre a pandemia, reconhecida pelo pĂșblico por meio de altos Ă­ndices de acesso.

Mocinhos e bandidos à parte, o imbroglio veio em må hora, pois o que a imprensa britùnica menos precisa agora é de controvérsia a respeito de suas pråticas. As receitas publicitårias continuam em queda, jornalistas estão sendo demitidos ou colocados em licença até mesmo nos grandes jornais, e o cenårio não apresenta sinais de melhora a curto prazo, com o país tendendo a continuar por muitos meses mais em lockdown parcial.

DesuniĂŁo nĂŁo ajuda nessa hora.

 

Luciana Gurgel, Diretora-executiva do MediaTalks byJ&Cia, Ă© jornalista brasileira radicada em Londres. Iniciou a carreira no jornal o Globo, seguindo depois para a comunicação corporativa. Em 1988 fundou a agĂȘncia Publicom, junto com Aldo De Luca, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Mudou-se para o Reino Unido e passou a colaborar com veĂ­culos brasileiros, atuando como correspondente do canal MyNews e colunista semanal do Jornalistas&Cia / Portal do Jornalistas, onde assina uma coluna semanal sobre tendĂȘncias no mundo do jornalismo e da comunicação. 

luciana@jornalistasecia.com | @lcnqgur