Londres – Uma nova briga entre o governo russo e o YouTube respingou no governo alemão, que, a princípio, nada tem a ver com o caso. No centro da discórdia está a Russia Today, a “BBC russa”, que teve esta semana dois canais em alemão banidos pela plataforma de vídeos do Google sob a alegação de divulgar fake news a respeito da Covid-19.
A reação de Moscou foi ameaçar bloquear tanto o YouTube quanto veículos alemães como a rede Deutsche Welle no país. Dmitry Peskov, o porta-voz do Kremlin, acusou o YouTube de violar a lei russa e invocou “tolerância zero” para o que vê como ato de censura da empresa americana.
Conflitos como esse não são novidade no Reino Unido, onde a RT já foi multada pelo órgão regulador de TV por violar regras de imparcialidade no caso do envenenamento de ex-agentes secretos russos em 2019, além de ter tido seu credenciamento negado para cobrir uma grande conferência de liberdade de imprensa em Londres há dois anos.
Mídia e governo da Rússia pedem punição para YouTube e alemães
A exemplo dos episódios anteriores, este logo virou questão diplomática envolvendo o governo alemão, cujo canal Deutsche Welle também leva conteúdo sobre o país para o mercado internacional, assim como fazem a BBC e outras redes estatais globais.
Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, afirmou que a decisão do YouTube foi parte de uma “guerra de informação desencadeada contra a Rússia” e pediu sanções contra a empresa e contra os meios de comunicação estatais alemães.
Margarita Simonyan, editora da RT, também bradou por punições para todos os envolvidos, embora o governo alemão tenha se manifestado sobre o caso dizendo que “nada tem a ver” com as decisões do YouTube.
Em uma entrevista coletiva, o porta-voz do governo alemão, Steffen Seibert, disse na quarta-feira que a Alemanha não tem relação com o bloqueio do YouTube.
“Quem afirma isso está inventando uma teoria da conspiração. Não foi uma decisão do governo alemão”, afirmou. “Pelo fato de haver muitas histórias circulando, especialmente em canais russos, quero deixar claro e transparente que esta é uma decisão do YouTube”.
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“Esta é uma verdadeira guerra da mídia declarada pelo Estado alemão contra o Estado russo”, disse a jornalista russa. “Espero que meu governo proíba imediatamente a Deutsche Welle e outros meios de comunicação alemães na Rússia, bem como feche os escritórios da ARD e da ZDF [emissoras de TV alemãs].”
Ela também instou o Kremlin a impor medidas retaliatórias contra o YouTube como uma questão de “respeito próprio”.
Elena Panina, membro do comitê de relações exteriores do parlamento russo, sugeriu um suposto interesse de elites alemãs na situação e comparou o YouTube ao “ministério da verdade”, da obra de ficção 1984, do escritor britânico George Orwell.
“Os canais da RT em alemão são hoje as únicas fontes confiáveis sobre eventos que os círculos dirigentes preferem não lembrar. Por exemplo, sobre a crise migratória de 2015-2016 e suas consequências ”, disse ela.
Plataforma do Google afirma que sites da Rússia divulgavam fake news
No novo caso envolvendo a Alemanha, o YouTube afirma que derrubou o canal em alemão da RT porque o conteúdo removido representava um “risco grave de danos” para a audiência.
Coincidentemente, na quarta-feira (29/9) a plataforma do Google publicou uma nova política em relação a fake news sobre quaisquer vacinas, puníveis com a remoção de conteúdo.
Leia mais: YouTube derruba 130 mil vídeos com fake news sobre Covid-19 e cria regra para todas as vacinas
O canal alemão da RT foi inicialmente banido por uma semana de envio de novo conteúdo, mas tentou contornar a restrição lançando outro canal chamado “Der Fehlende Part” (“a parte que faltava”, em tradução livre).
O órgão regulatório do governo russo para a mídia, Roskomnadzor, afirmou que o Google pode enfrentar multas de até um milhão de rublos (R$ 74 mil) caso se recuse a restaurar os canais da RT.
A agência russa de fiscalização também enfatizou que a insistência em não cumprir as determinações pode motivar uma multa de até R$ 222,5 mil ao YouTube.
Segundo a mídia russa, na última quarta-feira o Roskomnadzor enviou uma carta ao Google pedindo a remoção “o mais rápido possível de todas as restrições dos canais do YouTube RT DE e Der Fehlende Part, de propriedade da mídia russa Russia Today”.
Em seus canais internacionais, a emissora protestou e abriu o debate sobre a motivação do ato.
Em um artigo publicado nas redes sociais da RT em inglês, Glenn Diesen , professor da Universidade South-Eastern Norway e editor da revista Russia in Global Affairs, defende que “o governo dos EUA trabalha lado a lado com os gigantes privados da tecnologia para reclassificar a censura nas políticas das plataformas.”
The inability to recognise that the West can threaten Russian security makes it impossible to have any reasonable analysis of Russian foreign policy – @glenndiesenhttps://t.co/EW9szfpQqX
— RT (@RT_com) September 30, 2021
Moscou se irritou com boicote britânico e expulsou repórter da BBC
Guerras diplomáticas motivadas por bloqueios a conteúdo russo e acusações de disseminação de desinformação vêm se tornando uma prática da Rússia, em resposta a pressões que recebe fora do país.
Recentemente a repórter britânica Sarah Rainsford foi expulsa do país, após anos trabalhando em Moscou pela BBC.
O episódio da jornalista foi uma retaliação a restrições e boicotes dos britânicos à presença de jornalistas e veículos de imprensa russos em eventos, por serem considerados propulsores de notícias falsas.
Leia mais: Guerra diplomática entre Rússia e Reino Unido faz repórter da BBC ser expulsa de Moscou
A Rússia tem desde 2017 uma lei que permite rotular publicações e jornalistas como agentes estrangeiros, e também obriga a imprensa independente a revelar em suas reportagens os financiadores do veículo, o que afugenta patrocinadores.
Em relatório publicado no início deste mês, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) aponta que, além dos ataques aos profissionais e à mídia, o Kremlin está pressionando também as operadoras de redes sociais, multadas em quantias milionárias no primeiro semestre deste ano por não bloquearem o conteúdo banido pelo regulador de mídia russo.
RT mudou de nome para neutralizar associação com Rússia
A RT foi criada em 2005 em Moscou. Usava o nome de Russia Today, mas adotou o nome encurtado que não sugere à primeira vista ser uma emissora estatal. O grupo é formado por agências de notícias, sites e o canal de TV.
Internacionalmente, há serviços em inglês, árabe e espanhol.
O canal 24 horas britânico foi lançado em 2014, em uma esforço de soft power. Na grade das operadores a cabo, fica posicionada ao lado de outros canais de notícias como a BBC e a Sky News.
Na época do lançamento, Richard Sambrook, ex-diretor de notícias globais da BBC e diretor do Centro de Jornalismo da Universidade de Cardiff, disse em uma entrevista ao The Guardian: “editorialmente, sua linha é claramente aquela que está sendo conduzida pela agenda do Kremlin.
Depois do episódio de envenenamento por Novichok do ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha Yulia em Salisbury, na Inglaterra, em 2018, as tensões aumentaram.
O regulador de telecomunicações do Reino Unido, Ofcom, multou a rede por ter cometido sete violações do código de transmissão do país na cobertura do envenenamento. O órgão disse que as violações foram “uma grave falha de conformidade”, quebrando as regras de imparcialidade.
A rede ficou inconformada e veiculou uma longa reportagem comparando sua atuação à de redes americanas e à britânica BBC, que para a RT fazem o mesmo: divulgam a visão de seus países no exterior.
Barrados no baile
Meses depois, em julho de 2019, a pressão veio do próprio governo. As agências de notícias RT e Sputkink foram proibidas de participar de uma conferência global sobre liberdade de mídia em Londres, que teve como uma das estrelas Amal Clooney, na época enviada especial do país junto às Nações Unidas.
Cerca de 1 mil jornalistas e membros da sociedade civil, bem como 60 ministros do governo, participaram do encontro. Em um comunicado, o Ministério das Relações Exteriores britânico justificou a decisão:
“Não credenciamos o RT ou o Sputnik por causa de seu papel ativo na disseminação da desinformação.
Embora não seja possível atender a todos os pedidos de credenciamento, jornalistas de toda a mídia mundial estão participando da conferência, inclusive da Rússia.”
O escritório não mencionou para quais agências trabalham os jornalistas russos aceitos para cobrir o encontro.
Os meios de comunicação russos contra-atacaram, com a RT dizendo em um comunicado:
“É necessário um tipo particular de hipocrisia para defender a liberdade de imprensa enquanto proíbe vozes inconvenientes e calunia a mídia alternativa. Infelizmente, o mundo aprendeu a esperar exatamente isso do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido.”
A resposta da Sputnik
Impedida de cobrir o evento, a agência Sputnik tentou fazer do limão uma limonada, com uma reportagem afirmando que ela e a RT haviam “roubado a cena” na conferência.
Narrou os debates feitos sobre o caso, com falas de representantes da BBC. Mas trouxe à tona casos delicados envolvendo sua equivalente britânica, como a acusação feita por um produtor da BBC Síria de que uma filmagem em um hospital em Duma em abril de 2018 havia sido encenada.
As imagens, segundo a Sputnik, desencadearam uma poderosa campanha de informação anti-Damasco na grande mídia e foram usada como pretexto para uma campanha liderada pelos Estados Unidos ataque de mísseis à república árabe. O produtor disse que o ataque ocorreu, mas sem o uso do gás sarin, observando que a natureza de qualquer produto químico usado teria que ser verificada pela Organização para a Proibição de Armas Químicas.
Segundo a reportagem da Sputnik, reproduzida por veículos assinantes do serviço em todo o mundo, “os participantes da Conferência Global para a Liberdade da Mídia optaram por não levantar essa questão específica em suas discussões”.