Singapura prepara uma nova lei de comunicação que transforma a cidade-Estado em uma nação com poder de censurar a liberdade de imprensa com base no argumento do “agente estrangeiro”, seguindo os moldes de países como Rússia, Polônia e Camboja, criando métodos para proibir a publicação de informações e prender jornalistas.

A Lei de Contrapartidas contra Interferência Estrangeira (“FICA”, na sigla em inglês) permite ao governo punir veículos de imprensa e jornalistas antes mesmo de reportagens serem publicadas, o que configura censura prévia.

A FICA está sob avaliação do Poder Legislativo e pode ser aprovada já em outubro. Entre as punições financeiras previstas, jornalistas podem ser multados em até R$ 391 mil (€ 63 mil) e empresas, em R$ 3,9 milhões (€ 630 mil).

Leste europeu e Ásia acumulam exemplos de novos mecanismos de censura

Cingapura se alinha a outros países na tentativa de instaurar uma “censura legalizada”, criando leis que dificultam, e em alguns casos, tornam impossível para a mídia publicar informações livremente, sem passar pela aprovação do governo.

Legislação baseada no conceito de “agente estrangeiro” é usada pelo governo russo para sufocar publicações críticas ao governo, desde sites independentes até o portal Meduza, um dos principais da Rússia. Publicações “marcadas” pelo governo são obrigadas a publicar seus financiadores, o que afugenta patrocínio e já provocou o fechamento de redações.

Em Hong Kong, que vem tendo uma escalada de influência do governo chinês, a acusação de ligação com agentes estrangeiros é usada constantemente para suprimir a liberdade de imprensa, tendo como caso mais visível o fechamento do jornal Apple Daily, até então a grande voz pró-democracia no território autônomo.

Jornalistas e executivos foram detidos com base na Lei de Segurança Nacional, que dá poderes ao governo para censurar qualquer atividade que interfira na sociedade, o que é usado contra a imprensa, mas também na indústria do cinema, por exemplo, para censurar filmes.

Em outros casos, o Camboja criou um comitê para fiscalizar a mídia, com potencial de atuar como mecanismo censor, a Polônia tem em tramitação uma lei que proíbe grupos estrangeiros de controlar veículos de mídia, e Belarus reprime a atividade jornalística com prisões, espancamentos e invasão de redações.

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Sobre a possibilidade de apresentar queixas contra decisões do governo, a FICA diz que os recursos devem ser apresentados inicialmente ao próprio ministério responsável, que passa a ser juiz e parte no mesmo processo. 

Os demandantes insatisfeitos com a resposta do ministério podem então apelar para um tribunal especial que ainda não foi criado e regulamentado.

A única possibilidade de recurso legal para um tribunal real é limitada a violações processuais, quando regras pré-estabelecidas não são cumpridas pelo Estado. A Justiça, portanto, pode avaliar questões de forma, mas o governo terá sempre a última palavra em sobre o conteúdo e a razão das informações serem classificadas como “fora da lei”.

“Claramente a FICA mira os meios de comunicação independentes com base na soberania nacional”, avalia a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) sobre a legislação em vias de ser aprovada.

A RSF cita como exemplo o The Online Citizen, mídia independente que está inacessível desde o último dia 16, pois sua licença foi suspensa com base em alegações de “falhas repetidas” em fornecer informações completas sobre suas fontes de financiamento.

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Lei contra fake news, de 2019, já foi apontada como censura à liberdade de imprensa

Simplesmente “preparar ou planejar” a publicação de conteúdo considerado proibido pela nova lei será punível com prisão.

Segundo afirma o projeto do FICA, o Ministério da Administração Interna terá o direito de “impedir” a publicação de qualquer conteúdo crítico, bloqueando as informações ou qualquer endereço de internet, aplicativo ou rede social.

O governo também poderá restringir o acesso a plataformas digitais e até mesmo obrigar a publicação de conteúdo preparado pelo governo. Tudo isso sem a necessidade de uma ordem judicial. Contraditoriamente, a cidade-Estado é um pólo de tecnologia e negócios na Ásia, atraindo Google e Facebook a abrirem grandes escritórios no território, por exemplo.

“Com suas definições extremamente vagas, abordagem arbitrária e falta de recurso legal independente para aqueles que recebem ordens do governo, o projeto de lei do FICA é uma abominação tanto do ponto de vista legal quanto no que diz respeito aos direitos fundamentais”, disse Daniel Bastard, chefe do escritório da RSF na região Ásia-Pacífico.

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A nova lei pode se somar à já aprovada Lei de Proteção contra Falsidades e Manipulação Online, de 2019, que permite que ministros do governo ordenem uma correção para alegações falsas ou enganosas publicadas na internet. 

Além disso, a lei, que foi criticada pelo poder de censura à liberdade de imprensa e de expressão, também determina que conteúdo que não seja de interesse público deve ser retirado.

Classificada em 160º lugar entre 180 países no Índice de Liberdade de Imprensa Mundial de 2021 da RSF, Cingapura foi pintada de preto no mapa de liberdade de imprensa da RSF desde 2020, já que a situação agora é classificada como “muito ruim”, em parte devido à contra as fake news, relata a organização.

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