Londres – A plataforma de newsletters por assinatura Substack gera pelo menos US$ 2,5 milhƵes (R$ 13 milhƵes) por ano a partir de apenas cinco populares boletins com desinformaĆ§Ć£o antivacina, um deles produzido por um jornalista que jĆ” trabalhou no New York Times e ano passado foi banido do Twitter.  

A denĆŗncia foi feita pela organizaĆ§Ć£o nĆ£o-governamental britĆ¢nica Center for Countering Digital Hate (CCDH), em um novo relatĆ³rio revelando o tamanho do negĆ³cio da desinformaĆ§Ć£o cientĆ­fica e quem ganha com ele. 

O levantamento saiu na mesma semana em que outra plataforma menos observada como ambiente de desinformaĆ§Ć£o, Spotify, enfrenta uma crise de imagem depois que o cantor Neil Young retirou suas canƧƵes em protesto contra o podcast antivacina Joe Rogan Experience. 

Seguidores de contas com desinformaĆ§Ć£o antivacina 

O estudo “Pandemic Profitters – The business of Anti-vaxx” (“Os beneficiĆ”rios da pandemia – O negĆ³cio Antivacina”) revela que existem cerca de 62 milhƵes de seguidores de contas antivacina em plataformas digitais.

A “cauda longa” das fake news transcende as chamadas “Big Techs” – isto Ć©, as cinco principais companhias de tecnologia: Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft – e Ć© um negĆ³cio lucrativo tambĆ©m para plataformas menores, diz o CCDH. 

Este Ć© o caso da Substack, empresa de mĆ­dia digital americana em que autores podem criar newsletters e vender assinaturas, ficando com 10% da receita. 

As diretrizes de publicaĆ§Ć£o estabelecem que atividades ilegais ou danosas nĆ£o sĆ£o autorizadas. Mas nĆ£o hĆ” proibiĆ§Ć£o de informaƧƵes erradas, em que a desinformaĆ§Ć£o sobre a Covid-19 se enquadra. 

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Contudo, o estudo do CCDH levantou que a partir de cinco boletins antivacina, a empresa gerou uma receita de milhƵes de dĆ³lares, enriquecendo e ajudando a enriquecer notĆ³rios teĆ³ricos da conspiraĆ§Ć£o jĆ” expulsos de outras redes sociais. 

Entre os boletins destacados pela organizaĆ§Ć£o estĆ£o os de Joseph Mercola e o de Alex Berenson, cada um com ā€œdezenas de milhares de assinantes pagosā€, de acordo com o CCDH.

Os outros trĆŖs autores citados no estudo sĆ£o o empresĆ”rio de tecnologia Steven Kirsch, que afirmou em seu Substack deste mĆŖs que ā€œas vacinas matam muito mais pessoas [sic] do que poderiam salvar da Covid-19ā€; o virologista Robert Malone, que escreveu no mĆŖs passado que as vacinas de mRNA fazem com que os corpos das crianƧas ā€œfaƧam proteĆ­nas de pico tĆ³xicasā€; e um autor pseudĆ“nimo escrevendo como ā€œeugyppiusā€.

Ajudinha para a desinformaĆ§Ć£o 

A prĆ³pria plataforma se encarrega de promovĆŖ-los.

Segundo o levantamento, vĆ”rios boletins antivacina estĆ£o listados entre os mais bem classificados na categoria ā€œpolĆ­ticaā€ da Substack, incluindo os de Mercola (nĀŗ 13) e Berenson (nĀŗ 6).

Juntas, as desinformaƧƵes de Mercola e Berenson correspondem a US$ 2,2 milhƵes da receita anual mencionada no relatĆ³rio, um lucro de cerca de US$ 183.000 por mĆŖs.

Berenson, que trabalhou na redaĆ§Ć£o do jornal The New York Times por 10 anos, foi considerado pelo antigo empregador em agosto de 2021 como “o homem mais equivocado da pandemia”, sendo banido do Twitter por desinformaĆ§Ć£o sobre a Covid-19. 

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O mĆ©dico osteopata Joseph Mercola, por sua vez, foi definido pelo NYT como “o propagador mais influente da desinformaĆ§Ć£o online sobre a Covid-19 em 2021”.

Detalhes acerca dos milionƔrios antivacinas da Substack podem ser conferidos no vƭdeo abaixo, produzido pela ONG.

Entre os conteĆŗdos enganosos propagados pela dupla, estĆ£o manchetes como:

ā€¢ A agenda de vacinaĆ§Ć£o em massa e reforƧos para a vida fazem parte do golpe tecnocrĆ”tico em andamento

ā€¢ Vacinas nĆ£o impedem hospitalizaƧƵes ou mortes por Covid

ā€¢ Os dados sĆ£o muito claros: as vacinas matam muito mais pessoas do que podem salvar da COVID

ā€¢ As inoculaƧƵes COVID-19 da Pfizer causam mais doenƧas do que previnem

 A resposta do Substack sobre desinformaĆ§Ć£o 

ApĆ³s a denĆŗncia sobre a desinformaĆ§Ć£o antivacina na plataforma, os fundadores do Substack, Hamish McKenzie, Chris Best e Jairaj Sethi, publicaram um texto justificando a decisĆ£o de manter os autores na plataforma sob o argumento da liberdade de expressĆ£o: 

ā€œĆ€ medida que enfrentamos uma pressĆ£o crescente para censurar o conteĆŗdo publicado no Substack que para alguns parece duvidoso ou censurĆ”vel, nossa resposta permanece a mesma: tomamos decisƵes com base em princĆ­pios  que nĆ£o sĆ£o aƧƵes de relaƧƵes pĆŗblicas, defenderemos a liberdade de expressĆ£o e manteremos nossa abordagem de moderaĆ§Ć£o de conteĆŗdo sem intervenĆ§Ć£o.”

Eles admitem que esta posiĆ§Ć£o tem “algumas consequĆŖncias desconfortĆ”veis”. 

“Significa que permitimos que os escritores publiquem o que quiserem e que os leitores decidam por si mesmos o que ler, mesmo quando esse conteĆŗdo for errado ou ofensivo, e mesmo quando isso signifique tolerar a presenƧa de escritores dos quais discordamos fortemente.”

No entanto, dizem acreditar que essa abordagem Ć© “uma prĆ©-condiĆ§Ć£o necessĆ”ria para construir confianƧa no ecossistema de informaƧƵes como um todo”:

“Quanto mais instituiƧƵes poderosas tentarem controlar o que pode e o que nĆ£o pode ser dito em pĆŗblico, mais pessoas estarĆ£o prontas para criar narrativas alternativas sobre o que Ć© ā€œverdadeā€, estimuladas pela crenƧa de que hĆ” uma conspiraĆ§Ć£o para suprimir informaƧƵes importantes. Quando vocĆŖ analisa os dados, fica claro que esses efeitos jĆ” estĆ£o em pleno vigor na sociedade.”

Os fundadores do Substack observam que o mundo, e particularmente os EUA, vivem uma “epidemia de confianƧa, causa e efeito da polarizaĆ§Ć£o”. E defendem a ausĆŖncia de intervenĆ§Ć£o como caminho para dar Ć s pessoas a liberdade de escolher o que vĆ£o ler. 

“Continuaremos a tomar uma posiĆ§Ć£o forte em defesa da liberdade de expressĆ£o porque acreditamos que as alternativas sĆ£o muito piores. Acreditamos que quando se usa a censura para silenciar certas vozes ou empurrĆ”-las para outro lugar, isso nĆ£o faz com que o problema da desinformaĆ§Ć£o desapareƧa, mas piora o problema da desconfianƧa.”

Big Techs tambĆ©m ganham com desinformaĆ§Ć£o

O Substack nĆ£o Ć© o Ćŗnico a lucrar com a desinformaĆ§Ć£o. De acordo com o Center for Countering Digital Hate, a receita anual com assinaturas, anĆŗncios e venda de produtos gerou no Ćŗltimo ano uma receita estimada em US$ 1,1 bilhĆ£o para as Big Techs.

A chamada “indĆŗstria antivacina” computou receitas anuais de pelo menos US$ 35 milhƵes. 

“Ɖ um acordo mutuamente lucrativo”, diz Ihmran Ahmed, CEO da ONG.

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O CCDH classifica como “indĆŗstria antivacina” a “rede de empresas, ONGs, comitĆŖs de aĆ§Ć£o polĆ­tica, esquemas de afiliados e impĆ©rios de marketing de mĆ­dia social”.

Antivacinas: quem sĆ£o e como trabalham

O relatĆ³rio Ć© enfĆ”tico em demonstrar que o lucrativo universo das fake news antivacinas foi alimentado pelo uso das mĆ­dias sociais e por suas brechas – quer isso se refira Ć s suas fracas diretrizes de contenĆ§Ć£o, quer seja pelas poucas legislaƧƵes que as contemplam.

“Quando a capacidade dos antivacina de atingir um grande pĆŗblico on-line Ć© reduzida, [eles] nĆ£o podem transmitir suas mensagens mortais, recrutar novos ativistas antivacinas ou arrecadar fundos de doaƧƵes ou produtos”, diz o texto. “As plataformas devem agir”.

Imran Ahmed, CEO do CCDH (DivulgaĆ§Ć£o/CCDH)

De acordo com o CEO da ONG CCDH, Imran Ahmed, a confianƧa em promover abertamente mentiras e falsas curas vem de anos de impunidade em que essas pessoas foram acolhidas em plataformas populares de mĆ­dia social, direcionando trĆ”fego e dĆ³lares de publicidade para o Facebook, Instagram, Twitter e YouTube.

O relatĆ³rio lista doze dos principais propagadores de desinformaĆ§Ć£o antivacina: Joseph Mercola, Andrew Wakefield, Robert F. Kennedy Jr., Del Bigtree, Larry Cook, Ty and Charlene Bollinger, Sherri Tenpenny, Mike Adams, Rashid Buttar, Barbara Loe Fisher, Sayer Ji e Kelly Brogan.

A publicaĆ§Ć£o mostra que os antivacina ganham dinheiro por meio de doaƧƵes e de vendas de produtos ou infoprodutos para promover seus pontos de vista enganosos nas redes sociais.

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Uma das estratĆ©gias principais Ć© o marketing de afiliados, que consiste na geraĆ§Ć£o de um link que promove um determinado produto, como um livro de um colega que segue a mesma agenda ideolĆ³gica.

Esse link, por sua vez, gera um cookie. Uma vez clicado, em caso de compra o gerador do link recebe uma comissĆ£o, como explica o relatĆ³rio. 

“Todos os doze antivacinas estudados no relatĆ³rio apareceram em vĆ­deos e conferĆŖncias diretamente ou os promoveram em suas contas de mĆ­dia social, em alguns casos incorporando um URL que poderia ser usado para rastrear a atividade dos afiliados”.

Os danos da desinformaĆ§Ć£o antivacina

Para Imran Ahmed, os governos precisam criar novos Ć³rgĆ£os para analisar como os atores de mĆ” fĆ© usam a internet para causar danos e convocar Ć³rgĆ£os nĆ£o governamentais que possam responder de forma eficaz. 

O relatĆ³rio aponta para dois focos extremamente importantes. Um deles Ć© a inoperĆ¢ncia de polĆ­ticas pĆŗblicas capazes de balizar o universo de conteĆŗdos online.

O outro diz respeito Ć  “vista grossa” feita pelas mĆ­dias sociais e empresas de tecnologia Ć s fake news. Isso porque elas, como pode-se ver no caso da Substack, acabam  lucrando junto.

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Ahmed completa sua anƔlise enfatizando as reponsabilidades especƭficas das mƭdias sociais e dos governos, respectivamente:

“A falha das mĆ­dias sociais em agir na pandemia nos custou vidas, e a falha dos governos em agir apĆ³s a pandemia pode nos custar nossa sociedadeā€.

PreocupaƧƵes com relaĆ§Ć£o Ć  desinformaĆ§Ć£o cientĆ­fica tambĆ©m se fizeram presentes em outro relatĆ³rio publicado recentemente , pela Royal Society de Londres.

Nele, a associaĆ§Ć£o defendeu a importĆ¢ncia do foco em polĆ­ticas voltadas aos aplicativos de mensagens, alĆ©m do fortalecimento de polĆ­ticas publicas e da promoĆ§Ć£o de educaĆ§Ć£o midiĆ”tica dos cidadĆ£os.

O relatĆ³rio completo (em inglĆŖs)  pode ser visto aqui 

DesinformaĆ§Ć£o antivacina no Spotify

O Substack nĆ£o Ć© a Ćŗnica plataforma de compartilhamento de conteĆŗdo questionada por abrigar criadores que produzem desinformaĆ§Ć£o antivacina.

A publicaĆ§Ć£o do relatĆ³rio do Center for Countering Digital Hate coincidiu com a crise enfrentada pelo Spotify.

O mĆŗsico Neil Young protestou contra um episĆ³dio do podcast do comediante Joe Rogan que traria desinformaƧƵes a respeito da Covid-19,  desencadeando uma movimento contra os antivacina que usam a plataforma de streaming para promover teorias conspiratĆ³rias. 

Young afirmou que sairia da plataforma caso o podcast de Rogan nĆ£o fosse tirado do ar.

O Spotify – a quem pertence o podcast Joe Rogan Experience, comprado por US$ 100 milhƵes – resolveu encarar a briga.

Deixou Young, seus companheiros de banda Crosby, Still e Nash, e a cantora Joni Mitchel irem embora.

Manteve o antivacina e anunciou medidas para sinalizar conteĆŗdo duvidoso. Mas acabou perdendo valor de mercado com a crise de imagem. 

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