Londres – A primeira aparição pública de Charles III nesta sexta-feira (9)cumprimentando súditos diante do Palácio de Buckingham, é o primeiro ato de um desafio monumental assumido pelo rei de 73 anos: dar continuidade à monarquia britânica, missão conduzida com maestria por sua mãe durante 70 anos de reinado. 

Charles III assume a coroa ocupando um preocupante sétimo lugar em admiração entre todos os membros da família real, enquanto a rainha consorte, Camilla, aparece em oitavo. Ele perdem até para Zara Philips, a filha da princesa Anne, que tem poucas funções públicas. 

Mais do que ego ou vaidade, a medição do instituto YouGov quando o movimento republicano está em ascensão no Reino Unido e nos países que fazem parte da Commonwealth deixa os monarquistas em sinal de alerta. E um dos riscos é a chamada monarquia “enxuta”, com menos membros ativos capazes de dar continuidade à popularidade na era Elizabeth. 

Uma monarquia enxuta, risco para o rei Charles?

O respeito pela figura carismática e querida da rainha, resultado de sua incansável agenda de viagens e compromissos oficiais em que encantava de pessoas comuns a líderes mundiais – chamadas de “ofensivas de charme ” – , conseguiu estancar até hoje algumas iniciativas de rompimento com a monarquia.

Mas não todos. No início deste ano, Barbados deixou de ter a rainha como chefe de Estado, e Charles foi lá testemunhar o momento. 

Semanas depois, uma viagem dos populares William e Kate a nações do Caribe terminou em constrangimento, com eventos cancelados por riscos de protestos contra o passado escravocrata e colonialista da Inglaterra imperial. 

No Reino Unido, o grupo de pressão Republic faz uma campanha consistente contra o sistema atual, defendendo que o chefe de estado seja eleito pelo povo, e não o herdeiro de uma família. 

Na morte da rainha Elizabeth eles se mantiveram mais neutros, sem os ataques tradicionais. Mas o tuíte fixado no alto da página no Twitter não é muito delicado, sinalizando que tão logo passe o luto oficial e a comoção pela perda da figura carismática, a campanha venha com mais força ainda. 

A mudança de regime não é simples. Ela depende de uma complexa alteração de leis e da aprovação do Parlamento, uma batalha complicada em um país conservador e que se acostumou com a mística da família real. Mas será que é possível? 

Em um artigo no portal acadêmico The Conversation, o professor de Direito da Universidade de Bangor Craig Prescott salienta que as monarquias raramente são estáticas: 

“Com o tempo, o papel de qualquer monarquia se adaptará a desenvolvimentos constitucionais mais amplos”.

Ele observa que o rei Charles já sinalizou que pretende adotar um modelo “slim”, mais enxuto de monarquia, reduzindo a quantidade de seus membros atuantes, e que recebem remuneração para representar a Coroa e o país. 

Por razões alheias à sua vontade e à da rainha Elizabeth, isso já começou a acontecer.  

No início deste ano o príncipe Andrew foi obrigado a se afastar de qualquer função pública e perdeu seus títulos pelo envolvimento no escândalo de agressões sexuais do pedófilo Jeffrey Epstein.

E a monarquia foi questionada sobre quem estaria assumindo a conta do acordo firmado por ele com a acusadora do processo judicial movido em Nova York. 

Antes dele, o príncipe Harry e sua mulher Meghan Markle romperam ruidosamente com a família real e se mudaram para os EUA.

Embora a intenção inicial deles fosse continuar com algumas atividades oficiais, o núcleo da família – segundo rumores, o atual rei e o príncipe William -, discordaram e os dois acabaram inteiramente fora do grupo dos chamados “working members”. 

Harry ainda parece ressentido e abriu uma guerra judicial com o governo britânico para contar com segurança oficial em suas visitas ao Reino Unido. Mas no primeiro pronunciamento à nação, Charles deu mostras de que não há espaço para os Sussex na nova etapa da monarquia. 

O rei falou do seu amor aos dois, “que continuarão construindo sua vida no exterior”, fala que viralizou nas redes sociais. Já William e Kate foram oficializados como príncipe e princesa de Gales, herdando o titulo de Charles. 

Há quem defenda os gastos públicos para sustentar propriedades e viagens sob a perspectiva do retorno para o país, mas nem todos concordam com isso à luz da imensa riqueza da monarquia, um problema de imagem para Charles administrar.  

Como funcionam outras monarquias na era Charles 

Para entender o que esperar da monarquia britânica nos próximos anos sob o comando de Charles, o professor sugere examinar os outros 43 países que atualmente têm um monarca como chefe de Estado (15 dos quais compartilham o monarca britânico).

Eles podem ser agrupados livremente em quatro categorias: cerimonial, constitucional, forte e absoluto.

“Algumas monarquias ocupam um papel exclusivamente cerimonial, sem que o monarca exerça qualquer forma de poder decisório.

O papel dessas monarquias é muitas vezes estritamente delineado na constituição e se restringe a fornecer as decisões de formalidade cerimonial necessárias para que sejam efetivadas.”

O exemplo citado é o do Japão. Segundo Prescott, a Carta Magna japonesa afirma que  o Imperador deve realizar apenas os atos de Estado previstos nesta Constituição e ele não terá poderes relacionados ao governo”.

O imperador nomeia o primeiro-ministro somente depois de terem sido escolhidos pela Dieta (a legislatura japonesa).

Nas monarquias constitucionais, explica o professor de Bangor, “em tese os monarcas têm poderes políticos consideráveis ​​sob as constituições de seus países, mas na prática, as convenções constitucionais e outras regras reduzem o papel do monarca a uma formalidade”.

“Por exemplo, quem lê a constituição dinamarquesa pode ter a impressão de que o monarca governa o país: eles recebem “a autoridade suprema em todos os assuntos do Reino” . Eles não apenas nomeiam o primeiro-ministro, mas decidem o número de ministros e o que cada um faz.

Na prática, o monarca age de acordo com o conselho do governo no poder  com o papel do monarca fortemente regulado por convenções constitucionais. Considerando que durante seu reinado o monarca terá que lidar com políticos de diferentes partidos, eles devem ser politicamente imparciais, caso contrário correm o risco de serem envolvidos em controvérsias.”

Craig Prescott entende que o Reino Unido tem o mesmo modelo, em que a “ convenção cardinalícia ” exige que o monarca aja de acordo com o conselho dos ministros. Mas além disso, o monarca retém alguns poderes-chave (embora limitados).

“Tomemos, por exemplo, a nomeação (e, em teoria, a demissão) do primeiro-ministro.

A convenção exige que o monarca nomeie o parlamentar que tem a confiança da Câmara dos Comuns para liderar o governo”. 

É o que acabou de acontecer no Reino Unido, com a parlamentar Liz Truss eleita pelo Partido Conservador (que venceu as últimas eleições gerais em 2019), para chefiar o governo. 

O último compromisso oficial da rainha Elizabeth, dois dias antes de morrer, foi o primeiro encontro com Truss, uma formalidade protocolar que é vista como se fosse uma posse. 

Há ainda as monarquias “fortes”, uma variação das monarquias constitucionais, normalmente encontradas em pequenos (ou micro) estados, como Mônaco e Liechtenstein, explica o professor.

A constituição concede poderes significativos ao monarca, que passam a exercer pessoalmente. Em Mônaco, o poder executivo é exercido “pela autoridade máxima do príncipe” , apoiado por um ministro de Estado e um conselho de governo de seis membros que assessora o príncipe.

Nesses modelo, a legislação é promulgada pelo conselho nacional, mas o príncipe também deve assinar qualquer legislação.

“O nível de envolvimento direto do monarca pode ser extenso, como no caso de Mônaco, em que o príncipe de Mônaco tem a prerrogativa pessoal de decidir a quem será concedida cidadania”, diz Prescott. 

Por último vêm as monarquias absolutas, encontradas em Omã, Emirados Árabes Unidos, Eswatini (anteriormente conhecida como Suazilândia ) e Brunei, que têm monarcas que dominam a vida política de seus reinos.

Outro exemplo apontado pelo professor é a Arábia Saudita, onde o rei Salman bin Abdulaziz Al Saud também é primeiro-ministro e nomeia o conselho de ministros.

A assembléia consultiva pode propor leis, mas o rei escolhe se as promulga como um decreto real. Normalmente, os ministérios mais importantes são ocupados por outros membros da família real.

O  príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, exerce um poder executivo considerável. Ele é amplamente visto como reformador e figura autoritária, reprimindo impiedosamente a dissidência política e a corrupção, ao mesmo tempo em que aumenta outras liberdades – por exemplo, removendo a proibição de motoristas do sexo feminino, observa o professor. 

Recentemente, o Reino condenou duas mulheres com penas de 35 e 45 anos por tuítes defendendo direitos humanos. 

Dispersão geográfica, risco para a monarquia britânica 

Em linha com a teoria de que as monarquias não são estáticas, o Reino Unido evoluiu de uma monarquia absoluta, sob a qual o monarca tinha poder completo sobre seus “súditos”, para um modelo da era vitoriana que o escritor Walter Bagehot chamou de “ república disfarçada ”, ensina Craig Prescott. 

Ele questiona se agora processo evolutivo terminou. E sugere olhar para a Europa em busca de pistas sobre o que pode ser uma monarquia menos formal, “emagrecida”. 

“Na Suécia, o rei Carl Gustaf removeu cinco de seus netos da casa real, o que significa que eles não deveriam realizar deveres reais. Até certo ponto, isso já aconteceu com a retirada do príncipe Harry e do príncipe Andrew da vida pública. Com o tempo, isso pode ir mais longe.

Seria natural que membros da realeza mais velhos, como a princesa Anne, assumissem menos deveres.

Isso traz a implicação de que o futuro pode ver a família real fazendo menos. Mas há um risco, na opinião do professor:

Isso pode causar decepção e insatisfação. Essa é uma preocupação na Espanha , que tem uma pequena família real, composta pelo rei e pela rainha e suas duas filhas pequenas, para servir a um país de 47 milhões de pessoas.

Ele observa que o risco é que a monarquia recue para uma instituição sediada em Londres em um momento em que a geografia política do Reino Unido está se tornando mais dispersa.

“O Reino Unido é uma união de quatro nações, cada uma com seu próprio centro político. Como instituição do Reino Unido, a monarquia deve refletir isso”, salienta. 

O facto de nos próximos dias o rei  Charles ter programado viagens para para Belfast, Edimburgo e Cardiff indica que este ponto é compreendido pela nova fase da monarquia. 

No entanto, não está claro o quão fácil é conciliar isso com um grupo mais restrito de membros atuantes. “Além disso, existem as necessidades das outras 14 nações das quais o rei é agora chefe de Estado”, completa o professor. 

“O rei Charles III teve a mais longa espera de qualquer herdeiro conhecido para ascender ao trono na história britânica.

Ele teve tempo para pensar profundamente sobre como remodelar a monarquia e manter o apoio público a ela como uma instituição cerimonial no centro da vida pública britânica, fornecendo uma âncora em um momento em que o ritmo da mudança é desconcertante para muitos.

Se ele for bem-sucedido nessa tarefa, o príncipe William e seus herdeiros herdarão uma monarquia verdadeiramente moderna, adequada para o resto do século.”

Além das consequências para a monarquia, há riscos para o Reino Unido. Movimentos separatistas, principalmente na Escócia, podem prosperar sem a rainha Elizabeth como uma figura respeitável e a quem poucos queriam desafiar. Com Charles e menos “ofensivas de charme”, o futuro pode ser diferente.