Londres – A jornalista investigativa holandesa Stella Braam é a mais nova vítima conhecida de espionagem de um profissional de imprensa por parte de órgãos de inteligência do governo de seu país, tendo sido vigiada por mais de três décadas. 

A jornalista trabalhava na cooperativa The Investigative Desk, que reúne profissionais dedicados a apurar questões relacionadas às  indústrias de defesa e segurança, energia, alimentos, farmacêutica, saúde e tabaco, e descobriu que teve seus passos profissionais acompanhados por mais de três décadas ao solicitar seu dossiê ao serviço usando a lei de acesso à informação.

Assustada e temerosa sobre riscos a pessoas com quem conversou durante suas investigações, ela decidiu deixar o cargo para preservar as fontes. 

Jornalista vigiada no país que despencou em liberdade de imprensa 

Entre as organizações internacionais que se manifestaram sobre o caso está o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ), que cobrou das autoridades da Holanda “uma investigação rápida e transparente e a destruição de todos os dados coletados sobre ela e suas fontes e garantir que ela não seja alvo no futuro”. 

O medo não é injustificado. 

Embora ocupe o 28º lugar no Press Freedom Index da organização Repórteres Sem Fronteiras, que mede a situação da liberdade de imprensa em 180 países, a aparentemente pacífica Holanda despencou 22 posições em um ano.

Em 2021, o país assistiu chocado ao assassinato de uma celebridade da mídia, o apresentador de TV e jornalista investigativo, Peter De Vries, baleado à luz do dia no centro de Amsterdã.

Os autores foram capturados e estão sendo julgados. Eles teriam agido a mando do maior narcotraficante da Holanda, que está preso mas da cadeia continua comandando ações de intimidação e violência contra advogados, testemunhas e até um jornalista. 

A jornalista Stella Braam confirmou a suspeita de que poderia ter sido vigiada ao receber no dia 2 de junho do Serviço Geral de Inteligência e Segurança (AIVD) o conteúdo do arquivo mantido sobre ela pelo governo. 

O documento de 300 páginas continha informações de vigilância exercida pelo AIVD e pela organização que deu origem a ele, o BVD, segundo a jornalista. Na última semana de agosto ela tornou o caso público. 

Durante esses anos, Braam cobriu temas de alto risco como as atividades na Holanda do grupo ultranacionalista turco “Lobos Cinzentos” e o Partido do Movimento Nacionalista de extrema-direita da Turquia.

As autoridades de inteligência disseram no arquivo que a jornalista vigiada era “de interesse” devido aos seus contatos nos círculos de imigrantes turcos, de acordo com matérias publicadas pela imprensa holandesa.

Braam disse que ficou chocada quando leu os documentos. Eles revelaram que agentes de inteligência falaram com fontes anônimas sobre ela, embora o conteúdo real das conversas tenha sido alterado no dossiê que recebeu. 

“Quem eram essas fontes e o que elas disseram? Isso é aterrorizante. Eu chorei e depois fiquei com raiva.

O que possuía o serviço secreto? Por que sou perigosa para o Estado? Eu escrevi toda a minha vida sobre questões sociais importantes, na esperança de fazer a sociedade avançar. Aparentemente, o estado pensa o contrário.”

Uma de suas mais famosas investigações foi resultado de um ano e meio trabalhando como faxineira, ajudante de cozinha, empacotadora e camareira para revelar como era a vida das pessoas menos qualificadas sem acordo coletivo de trabalho. A reportagem deu origem ao livro “The blind spot of the Netherlands”, publicado em 1994.  

Ela também escreveu um livro sobre pessoas com Alzheimer, inspirado na doença do pai.

No dia 6 de setembro, segundo o CPJ, a chefe de comunicações do AIVD, Inge Oevering, se pronunciou sobre o caso.

Ela confirmou que o nome de Braam apareceu como “pessoa a ser acompanhada” no decorrer da vigilância da agência dos Lobos Cinzentos, mas isso “não justifica a conclusão de que a investigamos”.

A assessora disse à mídia holandesa que o serviço de inteligência “não poderia confirmar ou negar que a repórter tenha sido investigada”, apesar das evidências no dossiê. 

CPJ cobra do governo explicações sobre vigilância da jornalista 

“As autoridades holandesas devem conduzir uma investigação rápida e transparente sobre a vigilância da repórter investigativa Stella Braam de 1986 a 2017 e tomar medidas imediatas para garantir que os jornalistas não sejam monitorados por seu trabalho”, disse Attila Mong, representante do CPJ na Europa.

“Espionar jornalistas em um estado membro da União Europeia é inaceitável.

As autoridades holandesas devem explicar imediatamente seus motivos para essa vigilância, destruir qualquer informação coletada sobre Braam e seu trabalho e interromper quaisquer programas de vigilância em andamento direcionados a membros da imprensa.”

Qualquer cidadão holandês pode enviar uma solicitação ao serviço de inteligência para divulgar seus arquivos, de acordo com Braam, mas ela disse ao CPJ que apenas dados de mais de cinco anos atrás podem ser divulgados.

“Há uma chance muito boa de eu ter comprometido minhas fontes jornalísticas, e é provável que eu esteja sendo seguida até hoje”, disse ela à organização.

Braam disse que planeja tomar medidas legais para que o serviço de inteligência destrua todos os dados que coletou sobre ela e interrompa qualquer vigilância que ainda esteja em curso.

O CPJ disse ter enviado um e-mail para o serviço de inteligência AIVD para comentários, mas não recebeu resposta.