Londres – A morte da Rainha Elizabeth II, em 8 de setembro, não foi exatamente uma surpresa, visto que ela tinha 96 anos e andava com a saúde frágil, mas ainda assim despertou um frenesi na mídia local e internacional baseada em Londres.
No grupo de WhatsApp da FPA (Foreign Press Association) London, correspondentes dos principais veículos do mundo acompanham comunicados oficiais e instruções de credenciamento para os principais eventos de um cerimonial planejado há 30 anos para a despedida de uma figura pública que estreou na era do rádio e sai de cena no mundo das mídias digitais – talvez a única a ter atravessado todo esse tempo sob os holofotes.
O volume de postagens e a natureza das perguntas são uma amostra da ansiedade por uma boa cobertura e para entender o protocolo que não é tão familiar para muitos estrangeiros.
Antes do cortejo do caixão entre o Palácio de Buckingham e a sede do Parlamento, um correspondente perguntou aos colegas se havia significado especial para a saída ter sido marcada para 14h22 de quarta-feira, dúvida que também circulava nas redes sociais.
Nenhum. Apenas a pontualidade, um dos traços da cultura do país do qual Elizabeth II se tornou o maior símbolo. O trajeto leva 38 minutos. Assim, o caixão da rainha chegou ao Palácio de Westminster precisamente às 15 horas.
Esse é um exemplo da ansiedade de jornalistas acompanhando um dos maiores eventos midiáticos de tempos recentes. Ninguém quer perder nada, cada detalhe importa.
E os passos cronometrados só confirmam a tese de que ninguém faz RP como a família real britânica, pelo menos sob Elizabeth II.
Como em qualquer plano, nem tudo sai como previsto. O rei Charles III viralizou duas vezes irritando-se com inocentes canetas.
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Por ironia, o primeiro episódio aconteceu na solenidade de proclamação, nunca antes testemunhada pelo público. Desta vez, foi transmitida pela TV, como parte do esforço de aproximação da realeza com os súditos − que por sinal estão pagando a conta das homenagens.
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Também não estavam planejados protestos antimonarquia, reprimidos pela polícia com prisões.
Eles aconteceram em vários locais, incluindo Edimburgo, local sensível para o futuro do atual sistema político.
A Escócia quer fazer um novo plebiscito sobre sua independência. A morte da rainha é um baque para os que não querem o reino desunido, entre os quais se inclui boa parte da mídia britânica.
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Seja por interesses, para garantir audiência ou por uma dificuldade genuína de documentar a morte com distanciamento crítico, a cobertura é emotiva e marcada por uma obediente adesão à narrativa oficial dos press releases que o Palácio de Buckingham divulga várias vezes por dia.
Alguns chegam embargados, com detalhes sobre os próximos acontecimentos. Quando o embargo cai, TVs, edições online e canais de mídias sociais dos veículos disparam as novidades para uma audiência ávida por vivenciar cada detalhe do grande evento.
Emissoras de TV transferiram seus estúdios para a frente do Palácio de Buckingham, e de lá transmitem todos os telejornais, com âncoras de preto falando da rainha e por vezes de assuntos que nada têm a ver com a monarquia, tendo o templo da realeza ao fundo.
A gentileza com uma pessoa que morre é esperada. Mas talvez seja exagero a quase total ausência de contexto e de menções a fatos importantes para a vida da nação por parte da mídia britânica na morte da rainha Elizabeth.
Na morte da rainha Elizabeth, pouco questionamento da mídia
Um exemplo é a constrangedora situação envolvendo a fundação beneficente do agora rei.
Desde o ano passado, a Prince’s Foundation vem sendo objeto de revelações de uma suposta troca de doações por comendas reais, sobre um aporte feito pela família de Osama Bin Laden e sobre o recebimento de dinheiro vivo de um bilionário árabe pelo próprio Charles. Foram 3 milhões de euros transportados em malas e bolsas da chique Fortnum and Mason.
É chato falar disso agora, mas será que não é de interesse público saber mais sobre o novo chefe de Estado, o que ele disse sobre as revelações e como anda a investigação policial?
O mesmo acontece com a causa da morte da rainha, que aos 96 anos parecia frágil mas com saúde equilibrada. Dois dias antes de morrer, ela fez a transição entre primeiros-ministros com audiências pessoais e longas.
Porém, nada se fala sobre o motivo. E enquanto a mídia de outros países publica especulações e até declarações em “on” de pessoas que supostamente têm a informação correta, jornais e TVs britânicos seguem obedientes e mal tocam no assunto.
A mídia britânica é considerada uma das melhores do mundo, mas é formada por gente da elite, como mostram as pesquisas.
A monarquia é parte de seu universo, e isso pode estar influenciando decisões editoriais.
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Resta saber por quanto tempo o encantamento com Charles − ou a glorificação de um sistema conveniente − vai durar.
A primeira pesquisa de opinião depois da morte da rainha mostrou um aumento de admiração pelo novo rei.
Ainda assim, menos da metade dos súditos quer vê-lo como chefe de Estado até o fim da vida.
Para quem acha que o pessoal de RP do Palácio de Buckingham está tendo trabalho com os dez dias de eventos de despedida de Elizabeth II, na verdade a aventura está apenas começando.
Jornais mais críticos, como o The Guardian, já deixaram de ocupar toda a capa com assuntos da realeza e noticiam os acontecimentos em torno da morte da monarca sob outros ângulos que não são o oficial.
Na edição de sábado, o jornal destaca o constrangimento com a vinda do príncipe Mohammed bin Salman, que governa a Arábia Saudita e é apontado como mandante do crime contra o jornalista Jamal Khashoggi.
Enquanto isso, boa parte da mídia segue com a cobertura emocionada e adocicada da morte da Rainha Elizabeth, ainda que alguns tenham mencionado a preocupação do rei Charles com o aumento do custo de vida.
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A fala já sinaliza uma mudança de conduta, pois a rainha Elizabeth raramente se manifestava sobre questões econômicas ou políticas.
Se o rei Charles adotar outro estilo, pode angariar simpatia mas também se envolver em controvérsias que seus assessores terão que gerenciar.
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