Duas semanas após a libertação do jornalista francês Olivier Dubois,que passou 711 dias de sequestrado no Mali, um novo relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras documenta as violações à liberdade de imprensa na região do Sahel, um cinturão de 5 mil km situado abaixo do deserto do Saara, na África.
Os riscos a jornalistas, ao jornalismo independente e à liberdade de expressão vão de sequestros e assassinatos ao uso do chamados “mercenários da desinformação”, que operam nas mídias sociais e em países cujos governos são alinhados à Rússia.
Segundo o relatório, o grupo paramilitar Wagner, comandado por um aliado de Vladimir Putin na guerra com a Ucrânia, estabeleceu forte presença no ambiente de informação da região, colaborando para legitimar a colaboração entre a Rússia e países como Mali.
Deterioração da liberdade de imprensa na África
“What It’s Like to Be a Journalist in the Sahel” ( Como é ser um jornalista em Sahel, em tradução livre) mostra em 40 páginas como o trabalho da imprensa tem sido prejudicado em uma região em que proliferam milícias armadas, governos autoritários e influência da Rússia.
A região é uma faixa horizontal que começa no Mar Vermelho e termina no Oceano Atlântico, cruzando a totalidade ou partes dos territórios de Gâmbia, Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Argélia, Níger, Nigéria, Camarões, Chade, Sudão, Sudão do Sul, Eritreia, Etiópia, Djibuti e Somália.
Cinco profissionais de imprensa morreram na área nos últimos 10 anos. A repórter da Radio France Internationale Ghislaine Dupont e o técnico de som Claude Verlon foram assassinados por seus sequestradores no Mali em 2013.
Em 2019, Obed Nangbatna , do canal de TV Télé Tchad, no Chade, perdeu a vida. Em 2021, o repórter David Beriain e o cinegrafista Roberto Fraile, espanhóis, foram mortos em Burkina Faso.
Profissionais de imprensa são vistos como potenciais moedas de troca por milícias. Dois jornalistas do Mali, Hamadoun Nialibouly e Moussa M’Bana Dicko, sequestrados por grupos armados, continuam desaparecidos.
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Mercenários da desinformação associados à Rússia
No relatório sobre o estado da liberdade de imprensa nessa região da África, a RSF denuncia a atuação do que chamou de “mercenários da informação”, que “encontraram no Sahel um laboratório para as suas atividades”.
Segundo a organização, no Mali, ex-colônia francesa, a aproximação do governo com a Rússia é é acompanhada por uma retórica fundamentada no sentimento anti-francês, com referências às relações com “nossos parceiros russos”.
“Esta estratégia de comunicação, sobretudo nas redes sociais, deve-se muito à influência da empresa militar russa privada Wagner, que tem uma presença significativa no Mali desde 2020”, diz o relatório.
O Wagner, liderado pelo empresário Yevgeny Prigozhin, tem papel vital na guerra da Ucrânia, com mercenários lutando em nome da Rússia.
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O jornalista americano Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, cuja prisão na Rússia causou comoção internacional, foi um dos que escreveu sobre as atividades do grupo recentemente.
Um estudo publicado pelo instituto de pesquisa militar francês IRSEM citado pela RSF analisou o “suporte de informação para a implantação do grupo Wagner no Mali”.
Eles o definem como “apoio de informação para a presença não oficial da Rússia, promovendo conteúdo favorável aos paramilitares de Wagner, endossando suas ações por meios midiáticos e culturais, estabelecendo ligações com potenciais apoiadores locais e, em maior escala, legitimando a cooperação entre a Rússia e Mali e desacreditando seus detratores.”
O trabalho da RSF sobre a liberdade de imprensa na África cita um jornalista do Mali que não quis se identificar devido ao que chama de ameaças duplas:
“É difícil falar abertamente, aproveitar a liberdade de expressão na mídia hoje porque você está preso entre o martelo dos terroristas, que chegam a controlar programas de rádio em certas localidades, e a bigorna da junta e seus parceiros russos”.
A organização de liberdade de imprensa afirma que todos os jornalistas contatados fizeram comentários semelhantes a respeito da influência do grupo russo Wagner sobre a liberdade de imprensa.
“No Mali em geral, no norte e centro em particular, nenhum veículo de imprensa ousa falar de Wagner por medo de represálias”.
“Desde a suspensão do [canal de TV] France 24 e da [rádio] RFI, a mídia nacional absteve-se de usar as palavras ‘russo, mercenários’ ou ‘Wagner’. Todos adotam os termos usados pelo governo e falam sobre nossos ‘parceiros russos’ ou nossos ‘instrutores russos’.
A mídia local se limita para transmitir informações oficiais. Só a mídia internacional menciona relatórios de ONGs falando sobre direitos humanos violações pelos soldados brancos. Nenhum jornalista aqui se atreve a fazer qualquer reportagem investigativa sobre a presença do Wagner”.
Governos autoritários atuam contra a imprensa
O relatório da Repórteres Sem Fronteiras mostra também que as áreas proibidas ou de difícil acesso para jornalistas cresceram no Sahel.
Além de ameaças diretas à segurança física, repórteres estão sujeitos a restrições administrativas arbitrárias de alguns governos. A obtenção do credenciamento e de todas as autorizações necessárias para realizar reportagens é muitas vezes cheia de obstáculos.
Repórteres estrangeiros também correm o risco de deportação arbitrária. Mali e Burkina Faso têm expulsado jornalistas e fechado emissoras públicas francesas.
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O Chade é o país da região com o maior número de violações da liberdade de imprensa. Nos últimos 10 anos, 72 jornalistas foram presos e 51 casos de abusos foram registrados.
Entre eles estão ameaças, suspensão de direitos e ataques físicos. No país aconteceram duas mortes e três desaparecimentos.
Em seguida aparecem Burkina Faso, Mauritânia e Níger.
Indústria de fake news
Outro obstáculo para o trabalho da imprensa é a indústria das fake news, seja por militantes, seja de dentro dos próprios governos.
Além da colaboração da Rússia neste processo, governos também tentam moldar as notícias, segundo o documento, e “ameaçam diretamente a independência dos jornalistas e a confiabilidade de suas reportagens”.
O agravamento da situação de segurança minou o progresso legislativo que ajudou a fortalecer gradualmente o setor de mídia e proteger o jornalismo no Sahel desde o início dos anos 1990 até 2010.
No Benin, uma lei digital foi usada para deter arbitrariamente vários jornalistas, como Ignace Sossou em 2020, da Benin Web TV ‘s.
Reações para salvaguardar liberdade de imprensa
Apesar do ambiente difícil, a imprensa local e os correspondentes criaram iniciativas para combater a desinformação.
Alguns meios de comunicação desenvolveram agências de checagem encarregadas de verificar declarações amplamente compartilhadas na internet, além de falas de funcionários do governo ou políticos.
São projetos como Mali Check, Africa Check ou DésinfoxTchad.
Também foram criadas novas estações de rádio, como Yafa , Kalangou e Tamani, aponta a RSF. Elas surgiram para cobrir as notícias nas diferentes línguas locais faladas no Sahel. O relatório cita ainda a Rádio Ndarason Internationale na área transfronteiriça particularmente perigosa ao redor do Lago Chade.
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Ao mesmo tempo, a Célula Norbert Zongo para Jornalismo Investigativo é uma rede regional de jornalistas que promove a independência da imprensa na região.
A Repórteres Sem Fronteiras condena o uso da complexa tarefa de lidar com os ataques terroristas e a resposta dos exércitos regulares como fundamento para a violação do direito à informação e à liberdade de imprensa.
E pede que organizações não-governamentais que atuam na África Ocidental elaborem um código de conduta sub-regional para a segurança de jornalistas em zonas de guerra, bem como adotem os padrões do programa Journalism Trust Initiative (JTI) para garantir informações confiáveis online.
O relatório completo pode ser visto aqui.
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