Londres – O repórter Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, é a face mais conhecida entre os profissionais ligados ao jornalismo libertados na troca de 24 presos entre a Rússia e os EUA nesta quinta-feira, com a pressão pública em torno do seu caso tendo desempenhado papel central para o acordo – mas ele não é o único, e nem todos são americanos.
Junto com ele saíram também Alsu Kurmasheva, que tem dupla cidadania (russa e americana) e trabalha na Radio Free Europe/Radio Liberty, financiada pelo governo dos EUA; Vladimir Kara-Murza, ativista político russo-britânico e colunista do Washington Post, e Pablo Gonzalez, russo-espanhol que estava preso na Polônia acusado de espionar para a Rússia e entrou na cota de protegidos do país.
Mas se não fosse a pressão contínua e eficiente do Wall Street Journal – de propriedade do poderoso magnata da mídia Rupert Murdoch – e de organizações de direitos humanos sobre o governo americano, que levou à designação de Gershkovich como ‘detido injustamente’ para permitir negociações diplomáticas, o destino dos demais poderia ter sido diferente.
Jornalista americano libertado havia sido condenado a 16 anos
Desde a prisão do jornalista americano sob acusação de espionagem, ocorrida durante uma viagem de reportagem à região dos Montes Urais em março de 2023, , analistas apontavam que o objetivo seria forçar uma troca de presos, como havia sido feito pela Rússia em 2022 com a jogadora de basquete Britney Grinner.
Evan Gershkovich foi sentenciado no dia 19 de julho a 16 anos de cadeia em um julgamento rápido para os padrões russos, o que intensificou a percepção de que o acordo, que envolveu também outros países ocidentais como a Turquia e a Alemanha, poderia sair a qualquer momento.
No mesmo dia, Alsu Kurmasheva também foi condenada, a seis anos e meio de prisão.
Ela vive em Praga e estava na Rússia para visitar parentes, mas foi acusada ou junho de 2023 de ter entrado no país sem se registrar como “agente estrangeiro” a fim de coletar informações sobre atividades militares.
O caso dela não ganhou o status de “prisão injusta” como o do colega do Wall Street Journal, o que gerou protestos de entidades como a Repórteres Sem Fronteiras.
Mas sua inclusão no grupo que ganhou a liberdade nesta quinta-feira sugere que isso não era necessário, já que as negociações pela soltura de Gershkovich também a incluíam.
A operação está sendo considerada a maior troca de presos desde a guerra fria. Joe Biden e Kamala Harris receberam os que desembarcaram em solo americano na pista do aeroporto.
Pelo lado russo, o mais proeminente preso devolvido é Vadim Krasikov, que estava preso na Alemanha por ter matado um exilado checheno à luz do dia em Berlim.
Na mídia estatal russa, os libertados pelo seu lado foram denominados presos políticos, apesar de alguns deles cumprirem pena por crimes como assassinato.
Conheça os jornalistas que ganharam a liberdade na troca de presos
Evan Gershkovich
Com 32 anos e suportando estoicamente as recusas seguidas de liberdade condicional em mais de 500 dias de prisão na Rússia, Evan Gershkovich entrou para a história do jornalismo como o primeiro profissional de imprensa americano preso pela Rússia desde a Guerra Fria.
Cidadão americano filho de imigrantes da antiga União Soviética, ele fala russo, já foi repórter da Agence France-Presse e do Moscow Times e assistente de notícias do The New York Times.
O jornalista de 31 anos foi preso pelo serviço de segurança FSB em 29 de março em Yekaterinburg, na região dos Urais, acusado de coletar segredos sobre o complexo industrial militar da Rússia.
Segundo a organização de defesa da liberdade de imprensa Repórteres Sem Fronteiras, ele estaria apurando informações sobre as atividades do grupo de mercenários Wagner, comandado por um ex- aliado de Vladimir Putin, Yevgeny Prigozhin.
Duas semanas antes da prisão, Evan Gershkovich havia publicado uma reportagem sobre as atividades de Prigozhin, sugerindo tensões entre o Kremlin e o grupo Wagner que depois se confirmaram, com uma tentativa de golpe do ex-aliado.
Durante todo o tempo em que passou na cadeia, o repórter do Wall Street Journal compareceu a audiências várias vezes e sempre se mostrou firme, confiante e até sorridente.
O Wall Street Journal empreendeu uma campanha contínua pela libertação de seu jornalista, aproveitando marcos para lançar novos apelos e pressionando o governo de Joe Biden a fechar um acordo envolvendo troca de presos.
Em email para a equipe quando a confirmação da troca chegou, a editora-chefe do jornal, Emma Tucker, disse ter sido um dia histórico para o Wall Street Journal. Ela acrescentou que ele ganhará o tempo que precisar para se recuperar.
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Alsu Kurmasheva
Alsu Kurmasheva, de 47 anos, é editora do noticiário tártaro-bashkir da Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL), financiada pelo Congresso dos EUA.
No ano passasdo ela viajou para Kazan, na Rússia por motivos familiares, o que supostamente a dispensaria de se registrar como agente estrangeiro, denominação aplicada pelo país a pessoas ou entidades que recebem recursos financeiros de outros países.
Quando se preparava para retornar a Praga, em 2 de junho de 2023, seus dois passaportes foram confiscados. Kurmasheva ficou aguardando a devolução e acabou detida em outubro, com a prisão preventiva estendida várias vezes até o julgamento secreto há duas semanas.
Kurmasheva foi acusada em decorrência de seu suposto envolvimento na distribuição de um livro baseado em histórias de moradores da região do Volga que se opõem à guerra russa contra a Ucrânia. O livro foi publicado pelo serviço Tatar-Bashkir da RFE/RL em novembro de 2022.
Citando a agência de notícias estatal Tatar-Inform, o Comitê de Proteção a Jornalistas relatou que as autoridades acusaram Kurmasheva também de ter “conduzido deliberadamente uma coleta direcionada de informações militares sobre as atividades da Rússia pela Internet, a fim de transmitir informações a fontes estrangeiras”, o que teria ocorrido em setembro de 2022.
Ela foi acusada ainda de usar informações sobre a universidade do Tartaristão compartilhadas por professores convocados para o exército para preparar “materiais analíticos alternativos” para “autoridades internacionais relevantes e para conduzir campanhas de informação que desacreditam a Rússia”.
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Vladimir Kara-Murza
Preso desde abril de 2022 e condenado um ano depois a 25 anos de cadeia na Rússia, Vladimir Kara-Murza, 42 anos, filho de um dissidente soviético, emigrou para o Reino Unido quando era adolescente com a mãe e estudou em Cambridge.
De nacionalidade britânica e russa, é jornalista, ativista de direitos humanos e político de oposição. Ele era também colunista do Washington Post, tendo escrito dezenas de artigos para a seção de Opiniões Globais com críticas ao regime de Vladimir Putin.
Ele é reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho, tendo recebido prêmios como o Vaclav Havel de Direitos Humanos. Sua coragem em enfrentar o regime de Putin foi punida com duas tentativas de envenenamento em 2015 e 2017, levando-o a ficar em coma.
Mesmo na mira do governo russo, o jornalista não cessou suas críticas. Logo após a invasão russa à Ucrânia, Kara-Murza discursou na Câmara dos Deputados do Arizona, acusando as forças russas de lançarem bombas de fragmentação em áreas residenciais na Ucrânia e realizarem ataques aéreos em maternidades, hospitais e escolas.
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Pablo Gonzalez
O caso de Pablo Gonzalez, ou Pablo Rubstov, filho de pai russo e mãe espanhola, passou quase despercebido entre os libertados mais famosos da troca de presos entre os EUA e a Rússia, mas é uma história digna de filme e envolta em controvérsias.
Segundo o projeto Reporting Democracy, que faz parte da Balkan Investigative Reporting Network, acredita-se que ele seria um agente de inteligência militar da Rússia se passando por um jornalista espanhol que trabalhava na Polônia, Ucrânia e outros antigos países soviéticos.
No entanto, ele de fato colaborava para veículos espanhóis, como o jornal online Publico e a estação de TV La Sexta, e foi defendido ao longo dos mais de dois anos de sua prisão por organizações de liberdade de imprensa como a RSF e a Federação Internacional de Jornalistas.
Gonzalez foi preso em 27 de fevereiro de 2022 pela polícia polonesa, então sob o governo conservador do partido Lei e Justiça, na fronteira entre Polônia e Ucrânia.
A ABW, agência de segurança interna polonesa, alegou que ele estava realizando operações para beneficiar a Rússia enquanto se passava por jornalista e estava a caminho da Ucrânia quando foi detido.
Ele nunca chegou a ser julgado, e as condições de sua prisão foram objeto de protestos por violação de direitos internacionais.
No dia em que a prisão completou um ano, a mulher de González, Oihana Goiriena, negou em entrevista à RTVE, emissora estatal espanhola, que o marido trabalhasse para a espionagem russa .
“É como estar em um filme, é surreal”, comentou, reiterando que a única relação que ele tem com a Rússia é a família porque seu pai está lá.
Em maio de 2023, o meio de comunicação independente russo Agentstvo publicou uma reportagem afirmando que Pablo Gonzalez “era prova era provavelmente um agente plantado pela Direção Principal de Inteligência Russa (GRU) no círculo de Zhanna Nemtsova”, filha do líder da oposição russa Boris Nemtsov, assassinado em Moscou em 2015.
Ele teria se aproximado da Fundação Nemstov para ganhar a confiança de ativistas da oposição russa e transmitir informações para a Rússia.
Em nota, a Federação Internacional de Jornalistas comemorou a libertação e disse que ele estava preso sob acusação de espionagem sem que nenhuma evidência tenha sido apresentada.
A nota da Repórteres sem Fronteiras sobre o retorno dos jornalistas menciona apenas Evan Gershkovich e Alsu Kurmasheva.
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