Londres – Na semana em que práticas financeiras ilegais ou antiéticas por parte de políticos e celebridades foram reveladas pela operação Pandora, conduzida por um consórcio internacional de veículos de imprensa, um episódio na Ucrânia mostrou mais uma vez o desafio enfrentado pela mídia para apurar informações que envolvam autoridades.
Dois jornalistas do projeto de jornalismo investigativo Sckhemy tiveram equipamentos tomados e gravações apagadas durante uma entrevista com o presidente de um banco estatal em Kiev, que reagiu furioso a uma pergunta incômoda.
O incidente ocorreu no dia 4 de outubro, depois que o repórter Kyrylo Ovsyany pediu a posição de Yevhen Metsher, que comanda UKR Exim Bank (Banco de Importação e Exportação da Ucrânia), sobre uma reportagem que será veiculada no programa “Esquemas”. O caso gerou a abertura de um inquérito policial, e o executivo afastou-se do cargo.
Pergunta incômoda
Tensões entre a mídia e o governo não são novidade na Ucrânia, classificada em 97º lugar entre 180 países no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2021 da organização Repórteres sem Fronteiras, tendo perdido uma posição em relação ao ano anterior.
O novo caso aconteceu dentro do própria sala do presidente do banco, durante uma entrevista previamente agendada.
A pedido do executivo, guardas tentaram parar a gravação em uma das câmeras, agarraram o cinegrafista, pegaram um pen drive com o vídeo gravado da outra câmera e retiraram todo o equipamento do escritório por uma hora.
Em entrevista ao Comitê Para a Proteção de Jornalistas (CPJ), Fedor Sidoruk, editor do Skhemy, relatou que os seguranças chegaram a derrubar o cinegrafista para apreender o material.
Leia também | CIA avaliou sequestrar Julian Assange de embaixada em Londres e matá-lo, afirma reportagem
Sidoruk acrescentou que os jornalistas passaram uma hora trancados no gabinete de Metsher enquanto os guardas tentavam deletar o material.
Além do próprio Metzger, também estavam na sala Volodymyr Pikalov, diretor do departamento de política de informações do Ukreximbank, um segurança e outro funcionário do banco que usou força física contra o operador do Schem.
Uma hora depois, a equipe de filmagem recebeu de volta seu equipamento, mas o vídeo da entrevista inteira e do ataque foi removido.
Um dos jornalistas conseguiu registrar em áudio o que estava acontecendo e publicou no YouTube. Depois, eles conseguiram recuperar toda a gravação em vídeo e o canal 112 UA veiculou integralmente (em idioma local).
É possível ver a conversa, a intervenção dos seguranças e depois a equipe deixando a sala. O presidente do banco diz:
“Igor, pegue a câmera deles! Retire as fitas”.
Assessoria afirma que foi “forçada a interromper a entrevista”
O CPJ ucraniano afirmou que as autoridades estão investigando o caso de forma a garantir que todos os jornalistas possam operar em um ambiente seguro.
A Polícia Nacional afirmou em comunicado que iniciou uma investigação sobre a obstrução do trabalho dos jornalistas e abriu um processo penal nos termos do Artigo 171 do Código Penal da Ucrânia, por obstrução à atividade profissional lícita de jornalistas.
O banco afirma que a assessoria de imprensa foi “forçada a interromper a entrevista” porque as perguntas estavam relacionadas a informações sobre clientes e que a pergunta do jornalista não foi respondida por causa das regras de sigilo bancário.
Leia também: China ataca Repórteres Sem Fronteiras com artigo em jornal estatal: “porrete para combater o cão selvagem”
“Fazer perguntas inconvenientes a funcionários de bancos estaduais é o que os jornalistas fazem para o bem público, e agredi-los para apreender seu equipamento de gravação é absolutamente inaceitável”, disse Gulnoza Said, coordenadora do programa do CPJ para a Europa e Ásia Central.
“As autoridades ucranianas devem investigar o ataque aos jornalistas de Skhemy no UKR Exim Bank e responsabilizar os responsáveis. Esta não é a primeira vez que jornalistas do Skhemy enfrentam violência, e sua segurança deve ser garantida.”
Ao deixar o cargo, o executivo fez uma nota desculpando-se pelo ato.
“Minha reação excessivamente emocional e comportamento desenfreado em relação aos jornalistas não têm justificativa. Estou plenamente ciente de minha responsabilidade.
A fim de eliminar pelo menos alguns dos danos à reputação do banco e desviar a negatividade de sua equipe maravilhosa, estou escrevendo imediatamente uma carta de demissão do cargo de Diretor do Conselho durante as ações investigativas necessárias da Polícia Nacional e de um interno inspeção no banco”.
Jornalistas do Skhemy já foram vítimas de ataques na Ucrânia
Após o incidente, o banco postou um comunicado no Facebook dizendo que “respeita profundamente o direito do público de obter informações confiáveis e completas, e está sempre aberto à comunicação com a mídia”.
O comunicado afirma ainda que, após a entrevista, os jornalistas saíram do banco “sem qualquer obstrução (com todo o equipamento de gravação e iluminação)”.
Leia também: Singapura aprova lei contra interferência estrangeira que permite censura sobre internet e redes sociais
O CPJ havia documentado anteriormente o incêndio de um carro em agosto de 2020 e a vigilância de um jornalista afiliado ao Skhemy, e também um ataque em março de 2019 a um repórter cinematográfico da publicação.
O projeto de jornalismo investigativo é realizado em conjunto com a emissora financiada pelo Congresso dos Estados Unidos, Radio Free Europe/Radio Liberty, e a TV ucraniana Pershy.
Outras violações
Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, a mídia e os jornalistas são cada vez mais vítimas de conflitos partidários e da crescente polarização da sociedade ucraniana.
Em fevereiro, o país retirou por meio de um decreto as licenças de três canais de TV “pró-Kremlin” por cinco anos. A RSF considerou abuso do poder do governo de impor sanções que possam levar a um aumento da tensão partidária.
O decreto que intensificou a “guerra de informação” entre Moscou e Kiev ao rescindir as licenças de transmissão do 112 Ucrânia , NewsOne e ZIK entrou em vigor assim que foi assinado pelo presidente Volodymyr Zelensky em 2 de fevereiro.
Publicado pelo Conselho de Segurança e Defesa Nacional após a abertura de uma investigação pelo Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) sobre o “financiamento do terrorismo”, o decreto usa disposições do artigo 4 da lei da Ucrânia para sanções econômicas em casos de “participação no terrorismo.”
Leia também |Com canais da TV estatal banidos por fake news, Rússia abre nova “guerra”, contra YouTube e Alemanha
Os três canais de TV, cujas avaliações somadas chegam a apenas 1% dos telespectadores do país, segundo a RSF, são todos propriedade de um aliado do oligarca pró-Kremlin, Viktor Medvedchuk.
Dois dias após a assinatura do decreto, Serhiy Sternenko, o ex-chefe regional do partido político Pravy Sektor em Odessa, pediu a publicação de todos os dados dos jornalistas que trabalhavam para os três canais.
A Repórteres Sem Fronteiras condenou a ação.
“ Deploramos essa escalada na guerra de informação”, disse Jeanne Cavelier, chefe do escritório da RSF para a Europa Oriental e Ásia Central.
“ Mesmo que o desejo de combater a propaganda política russa seja legítimo, ele não justifica o uso da censura, e o banimento desses canais pode incitar a violência contra os jornalistas. Esta violação da liberdade de expressão viola as obrigações internacionais da Ucrânia. Instamos as autoridades a encontrar outras maneiras de preservar a independência e o pluralismo da mídia”, disse.
Em resposta a um apelo do movimento contrário à Rússia, nacionalistas ucranianos se reuniram em Kiev em frente à sede da Nash TV , outro canal considerado pró-Kremlin, e exigiram seu fechamento.
O repórter Oleh Nechay foi atingido depois que seu microfone foi roubado enquanto fazia uma reportagem ao vivo.
O vice-ministro do Interior, Anton Gerashchenko, respondeu aos ataques ordenando investigações criminais sobre a obstrução do trabalho dos jornalistas.
Também em fevereiro, um tribunal de Kiev ordenou que os provedores de acesso à Internet bloqueassem o acesso a 426 sites, incluindo a versão russa do RBC.ru , em resposta a uma reclamação de um empresário que os acusou de publicar informações hostis sobre ele. A polícia anulou a queixa , enquanto o gabinete do procurador-geral abriu uma investigação sobre as alegações.
Leia também
https://mediatalks.uol.com.br/2021/10/02/no-terceiro-aniversario-do-assassinato-do-jornalista-jamal-khashoggi-noiva-e-washington-post-cobram-acao-de-biden-contra-arabia-saudita/