“O projeto de lei em estudo centra-se na urgência de proteger a honra, a dignidade, a boa reputação e a privacidade pessoal do indivíduo e da família através dos nossos órgãos legais, sancionando indivíduos com o agravamento da pena por uso indevido dos meios de comunicação social, redes sociais ou sites que afetam os direitos fundamentais da pessoa protegidos por nosso ordenamento jurídico”.
Com este linguajar, parlamentares do Peru buscam justificar o Projeto de Lei 2862, já aprovado em uma votação no Congresso, que aumenta para até quatro anos de prisão a pena para pessoas condenadas pelo crime de difamação.
Apelidada de “Lei Mordaça” e dependendo de mais uma votação para ser confirmada, a iniciativa despertou o temor e a fúria nos ambientes jornalísticos do país, que percebem no projeto mais uma tentativa, entre muitas, de restringir a liberdade de expressão e silenciar vozes independentes.
Projeto de lei provoca reação da sociedade
A primeira votação da lei, no dia 4 de maio, durou apenas 11 minutos, sem que houvesse debate prévio e nem fossem levados em consideração posicionamentos de autoridades e organizações de direitos humanos. Na ocasião, a lei foi aprovada com 69 votos a favor e 28 contra.
A segunda votação da qual o projeto depende para virar lei estava prevista para acontecer no dia 18, mas acabou adiada frente a uma forte reação da sociedade civil e partidos que mudaram de posição quanto à proposta.
O presidente do Congresso, José Williams, afirmou que a votação decisiva poderia ocorrer nos dias subsequentes.
Um bem sucedido trabalho de lobby das associações jornalísticas pode significar que o Congresso acabe por rejeitar a iniciativa na próxima votação. Isto não significa, no entanto, que a imprensa peruana esteja protegida e possa respirar aliviada.
Diversos outros projetos foram apresentados com o potencial de inibir a liberdade de expressão no Peru, somando-se a quase 100 propostas com este tipo de teor desde 2006.
De forma geral, a postura da classe política do país em relação à imprensa é de ataque. A ofensiva se insere em um ambiente geral de deterioração das condições democráticas, provocada por uma aguda instabilidade política e um descrédito geral da população nas instituições.
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Isto significa que, independente do resultado da votação sobre o projeto da Lei Mordaça, jornalistas peruanos estão longe de poderem respirar aliviados.
“No Peru, estas coisas nunca morrem”, disse à LatAm Journalism Review (LJR) Rodrigo Salazar Zimmermann, diretor executivo do Conselho da Imprensa Peruana (CPP), organização que representa os principais meios de comunicação do país.
“Esse tipo de projetos de lei para penalizar a difamação e aumentar as penas de prisão surgiu nos últimos três ou quatro anos mais ou menos uma vez por ano.
Mesmo que este seja rejeitado, outro vai acabar surgindo. De alguma maneira, a rejeição pode inclusive motivar congressistas a proporem mais projetos de lei danosos”.
‘Lei Mordaça’ aumenta punição dos meios de comunicação
O Peru já tem vigente uma lei que pune culpados por difamação com até três anos de prisão e multa. A mudança proposta aumenta a punição para até quatro anos e multa.
Segundo um levantamento do jornal El Comércio, entre 2019 e 2022, ao menos 74 jornalistas e meios de comunicação foram denunciados ou processados judicialmente após divulgar informações sobre políticos, empresários, organizações religiosas, autoridades públicas e outras pessoas em posições de poder.
As acusações de difamação, injúria ou calúnia constam em 37 processos.
Segundo Zuliana Lainez, presidente da Associação Nacional de Jornalistas (ANP) do Peru, a enorme maioria dos acusados acaba absolvida.
Isso, no entanto, não significa que as acusações não gerem estragos: no Peru, um processo pode correr na Justiça até prescrever pelo período máximo correspondente ao tempo da pena de prisão somado à sua metade – ou seja, uma duração equivalente a 150% do tempo máximo da punição.
Com a lei atual que prevê sentenças de até três anos, os processos podem transcorrer durante o período máximo de 4 anos e meio. Se a nova legislação for aprovada, os processos poderão durar por até seis anos.
“A maioria dos jornalistas é absolvida, mas o castigo para eles é o processo, que é uma tortura. Se o processo for mais longo, a tortura judicial será mais longa”, disse Lainez à LJR.
“Para os jornalistas nas regiões fora de Lima, é insustentável parar por seis anos para organizar uma defesa legal.
Muitos enfrentam condições precárias e terminam com a defensoria pública, também muito incerta”.
Chefe da área de liberdade de imprensa do Instituto Imprensa e Sociedade (IPYS), Adriana León observa que os jornalistas não podem deixar o país enquanto enfrentam o processo, além de em geral precisarem gastar dinheiro para se defender.
Ela concorda que a própria acusação de difamação já impõe uma punição. “O objetivo não é tanto pôr o jornalista na prisão, mas sim cansá-lo, esgotá-lo”, afirmou León à LJR.
A possibilidade de punição por delitos contra a honra em âmbito penal contraria determinação da Comissão Interamericana de Direitos humanos, cuja Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão determina que “a proteção da honra nesses casos deve se dar na esfera cível, pois a sanção penal poderia inibir o controle da função pública necessária em uma sociedade democrática”.
“O projeto vai na contracorrente de todos os padrões interamericanos fixados sobre a honra, que sempre afirmou que os países resguardem a proteção à honra no âmbito civil”, disse Lainez.
Assim como outros países, se tornaram comuns no Peru campanhas virtuais de ataque contra figuras públicas, muitas vezes com trolls e bots.
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Parlamentares procuraram argumentar que a lei não se dirige contra jornalistas de fato, mas sim contra quem promove campanhas de difamação.
“Jornalistas sãos e inteligentes não precisam se preocupar com esse assunto”, disse Jorge Montoya, do partido conservador Renovação Popular, ao Infobae.
A lei, no entanto, não prevê nenhum novo instrumento para coibir a desinformação, e abrange a todos, podendo facilmente ser empregada contra jornalistas.
“Pela forma como a lei está definida, você nunca saberá quem está por trás de perfis caluniadores no Twitter. Não creio que com esta lei se combata a difamação ou o assédio virtual. Pelo contrário, é uma lei que diz claramente que serão castigados aqueles que publicam em meios de comunicação ou redes sociais”, afirmou León.
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Associações de jornalistas formam frente de resistência
A Lei Mordaça foi proposta pelo Peru Livre (PL), partido de esquerda que venceu as últimas eleições com a candidatura de Pedro Castillo, preso desde dezembro do ano passado após uma tentativa fracassada de golpe de Estado.
Além do PL, na primeira votação deram apoio as bancadas dos partidos Ação Popular (AP), Aliança para o Progresso (APP), Bloco Magistral de Coordenação Nacional (BM-CN), Renovação Popular (RP), Mudança Democrática – Juntos pelo Peru (CD-JPP), Podemos Peru (PP), Peru Bicentenário (PB) e Somos Peru (SP), incluindo siglas desde a extrema esquerda até a extrema direita.
Decididas a barrar o projeto, as cinco principais associações de jornalistas do Peru, que incluem desde grêmios patronais até organizações mais próximas a meios independentes, formaram uma frente ampla e começaram uma intensa campanha de mobilização.
Uma das primeiras iniciativas foi o próprio apelido de ‘Lei Mordaça’ conferido ao Projeto de Lei 2862.
“Foi um grande acerto denominá-la assim. Sem dúvida, os políticos não gostaram muito. Mas no país já se usa o marco legal para tentar silenciar investigações”, disse Lainez.
Na semana passada, a frente de defesa se reuniu com parlamentares de praticamente todas as siglas nos três primeiros dias úteis da semana, enquanto a votação estava marcada para a quinta-feira.
Os jornalistas relatam ter praticamente ouvido admissões dos congressistas de que buscavam intimidar a imprensa.
“Tentamos entender porque essa norma era a correta”, disse Salazar Zimmermann, da CPP.
“Muitos deles nos disseram que votaram a favor desses projetos de lei como uma espécie de vingança ou revanche contra o trabalho de jornalistas que investigam seus crimes, investigam seus negócios, a corrupção, os rotulam com adjetivos ou os deixam desconfortáveis durante entrevistas”, explicou.
“Muitos congressistas buscam se vingar da imprensa, embora seja um projeto lesivo à cidadania de forma geral”.
León, que também participou das conversas, conta que elas deixaram claro que “muitos congressistas legislam sem ler, e estão motivados em seus votos por suas paixões ou emoções”.
Segundo ela, o trabalho de convencimento deixou claro que grande parte dos parlamentares não entende a função social do jornalismo.
“Diziam ‘votei a favor da lei porque odeio a Juliana Oxenford’, uma jornalista. ‘Votei porque a odeio, não li o projeto.
Ou então ‘meus assessores me disseram que não é contra os jornalistas’. Ou seja, eles têm uma visão distorcida do que é o exercício do jornalismo”.
A despeito das dificuldades, o trabalho de convencimento foi bem sucedido.
Congressistas das bancadas da Ação Popular, da Aliança para o Progresso e do Peru Bicentenário retiraram seu apoio, deixando a iniciativa sem votos para a aprovação.
O presidente da Comissão de Justiça, Américo Gonza, do Peru Livre, pediu um intervalo para avaliar algumas das observações e “se possível, melhorar o texto”.
“Viram que estamos bastante organizados. Temos uma frente de defesa bastante forte, e contamos, digamos, com bastante acesso”, disse Salazar Zimmermann.
“Pedro Vaca, relator de Liberdade de Expressão da CIDH, disse que em poucos países da região viu uma frente tão unida e forte em defesa do jornalismo. Sem dúvida, temos diferenças em alguns textos, mas as razões que nos unem são mais fortes”, conclui.
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Crise política prolongada
Quando for votada, a lei pode ter alguns destinos. Pode simplesmente ser rejeitada, afastando por ora o perigo.
Se for aprovada com modificações, isto torna a primeira votação inválida, e outra será necessária. O texto pode ainda retornar à Comissão de Justiça, reiniciando todo o seu trâmite legislativo. “Para nós, o melhor seria votar e rejeitar”, disse Lainez.
Mesmo se isso acontecer, no entanto, a imprensa peruana deve continuar a esperar ataques vindos de sua classe política. A ofensiva acontece em meio a uma série de escândalos de corrupção, e a uma prolongada crise política.
Desde 2016, quando Pedro Pablo Kuczynski se elegeu presidente e a oposição ligada ao ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000), que detinha a maioria do Congresso, não aceitou o resultado, já houve sete tentativas de impeachment de presidentes peruanos, e três delas foram bem sucedidas (contra Kuczynski em 2017, Martín Vizcarra em novembro de 2020 e Pedro Castillo em 2022).
O país não conseguiu se estabilizar desde os escândalos de corrupção no âmbito do chamado caso Odebrecht a partir de 2017.
Mesmo antes, os partidos tradicionais que dominaram a política peruana durante quase todo o século XX perderam força com a crise econômica dos anos 1980, o estado de exceção durante o combate à guerrilha do Sendero Luminoso e o golpe de Fujimori em 1992.
Segundo levantamento do El Comercio, 25 dos 69 parlamentares que apoiaram o projeto na primeira votação enfrentam investigações, parte delas a partir de casos denunciados primeiro na imprensa.
A própria Lei Mordaça foi pautada a partir do caso conhecido como “mocha sueldo”, revelado a partir da unidade investigativa da emissora Latina, no qual parlamentares foram denunciados por embolsar parte dos salários de seus funcionários.
“Tudo tem a ver com o fato de nossos políticos estarem envolvidos em situações graves, em muitos casos crimes de toda ordem, e a imprensa estar ali de olho”, disse León.
Segundo Salazar Zimmermann, “muitos que podem votar contra realmente queriam votar a favor, mas não o farão porque agora estão na vitrine e não querem ficar pior com a cidadania”.
Isto explica outros projetos em curso que podem ameaçar a imprensa peruana.
Frente à iminente derrota, o Peru Livre reforçou uma campanha a favor de uma iniciativa para impor cotas de conteúdo cultural nacional às emissoras de rádio e TV.
Na Renovação Popular, uma congressista apresentou uma iniciativa que exige que aqueles que buscam exercer o jornalismo tenham um diploma profissional.
A ofensiva contra a imprensa acontece em meio a outras ameaças, como as agressões de policiais contra jornalistas durante protestos e o endurecimento de ataques de grupos de extrema direita ligados ao fujimorismo contra jornalistas e meios de comunicação.
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Em paralelo, acontece também um enfraquecimento de outras instâncias de controle do poder, como a diminuição da autonomia do Tribunal Constitucional em relação ao Congresso e a escolha de um defensor do Povo – responsável por prezar pelos direitos humanos e constitucionais – com vínculos políticos, sem histórico de atuação na área e com denúncias de conflito de interesses.
“Os projetos de lei e iniciativas contra jornalistas não podem ser vistos fora do contexto geral da política peruana. O Peru segue um caminho incessante para se tornar uma autocracia. Toda semana, o país deixa de ser uma democracia para se tornar algo como El Salvador ou a Guatemala”, disse Salazar Zimmermann.
Segundo León, “desde a crise política, estão acontecendo coisas que antes não aconteciam no Peru”.
“Eu penso que há um jornalismo muito ativo no Peru, que está observando, está verificando, e isso é uma coisa que deixa os políticos loucos. Porque todo mundo aqui tem, como dizemos, um telhado de vidro. Todos eles têm alguma coisa a esconder”, disse.
Sobre o autor
André Duchiade é jornalista e tradutor. Trabalhou como repórter na editoria de política internacional de O Globo. Ele também foi fellow de mídia no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim.
Este artigo foi originalmente publicado no LatAm Journalim Review, um projeto do Knight Center for Journalism in the Americas (Universidade do Texas em Austin). Todos os direitos reservados ao autor.
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