Com margem apertada – 56 votos contra, 45 a favor e cinco abstenções – o Congresso do Peru rejeitou em segunda votação um projeto que ficou conhecido como “Lei da Mordaça” por seu potencial de limitar a liberdade de expressão e punir jornalistas por seu trabalho no país.

Projeto de Lei 2862 previa modificações ao Código Penal do país, incluindo o aumento para quatro anos de prisão aos condenados por “difamação” em publicações na imprensa ou redes sociais. 

A decisão, uma vitória para a imprensa local, reverte um cenário que permitiria permitiria censurar e até mesmo prender jornalistas pelo exercício de seu trabalho.

Projeto foi proposto por partido do presidente preso

O PL 2862 foi proposto pelo Peru Livre (PL), partido de esquerda que venceu as últimas eleições com a candidatura de Pedro Castillo, preso desde dezembro do ano passado após uma tentativa de fechar o Congresso para escapar do impeachment.

Apresentado pelo deputado Segundo Montalvo, o projeto passou por uma primeira votação no dia 4 de maio, aprovado com 68 votos a favor, uma abstenção e 27 contra, de acordo com o portal noticioso Perú21.

Naquela ocasião, a sessão durou 11 minutos, sem debate prévio nem consulta a entidades, segundo o jornal El Comercio.

Prevista para o dia 18 de maio, a segunda votação — que bateria o martelo sobre o assunto — foi adiada após forte pressão pública e de partidos que mudaram de posição.

Isso porque o PL 2862, que se popularizou como “Lei da Mordaça”, exigia mudanças nos artigos 131 (Calúnia) e 132 (Difamação Agravada) do Código Penal do Chile em dois pontos que limitariam a liberdade de expressão no país:

  • Condenados por calúnia teriam de reparar materialmente os autores do processo;
  • Condenados por difamação em redes sociais, sites ou meios de comunicação poderiam ser presos por quatro anos.

Na ocasião, parlamentares que defendiam a lei procuraram negar esse efeito, defendendo que o projeto se dirige apenas “contra quem promove campanhas de difamação”.

A votação só foi ocorrer no dia 15 de junho, em uma sessão que iniciou as 9h da manhã e se encerrou ao anoitecer, com votação apertada contra o projeto. 

Lei limitaria liberdade de expressão no Peru

Após a notícia, a Federação Internacional de Jornalistas celebrou a vitória nas redes sociais, sem deixar de pedir alerta contra leis injustas ao jornalismo:

Se fosse aprovada, a Lei da Mordaça teria fortes efeitos contrários à liberdade de imprensa e de expressão, segundo Zuliana Lainez, presidente da Associação de Jornalistas do Peru (ANP) e Ricardo Burgos, do Colégio de Jornalistas do Peru (CPP), ouvidos pelo Perú21.

Os dois explicam que a lei permite que políticos e juízes possam aparelhar o judiciário contra a imprensa. Isso aconteceria em perseguições judiciais com processos mais longos e prisões preventivas — que silenciariam investigações em curso.

Apesar da vitória, é pouco provável que os jornalistas peruanos possam ficar em paz com isso.

“No Peru, estas coisas nunca morrem”, disse à LatAm Journalism Review (LJR) Rodrigo Salazar Zimmermann, diretor executivo do Conselho da Imprensa Peruana (CPP), organização que representa os principais meios de comunicação do país.

“Mesmo que este seja rejeitado, outro vai acabar surgindo. De alguma maneira, a rejeição pode inclusive motivar congressistas a proporem mais projetos de lei danosos”.

De acordo com um levantamento do El Comercio, desde 2006, quase 100 propostas de teor similar já foram apresentadas ao congresso do país.

Leis locais já são duras e instrumentais contra jornalistas

Mesmo sem a Lei da Mordaça, o Peru já pune difamação com até três anos de prisão — e tem sido recorrentemente usada contra a liberdade de imprensa e de expressão.

Entre 2019 e 2022, ao menos 74 jornalistas e meios de comunicação foram denunciados ou processados após divulgar informações sobre pessoas em posições de poder no país.

E há fortes motivos para considerar que o objetivo do PL 2862 era o silenciamento: 25 dos 68 parlamentares que aprovaram o projeto na primeira votação eram investigados no Ministério Público do Peru.

Segundo o El Comercio, a maioria destes inquéritos partiu de denúncias feitas pela imprensa.

À LJR, Lainez aponta que o problema não é a prisão, mas o processo, que pode correr na Justiça até prescrever por 150% do tempo máximo da punição.

“A maioria dos jornalistas é absolvida, mas o castigo para eles é o processo, que é uma tortura. Se o processo for mais longo, a tortura judicial será mais longa”, disse Lainez.

“Para os jornalistas nas regiões fora de Lima, é insustentável parar por seis anos para organizar uma defesa legal.

“Muitos enfrentam condições precárias e terminam com a defensoria pública, também muito incerta”.

O Peru ocupa a 110ª posição entre 180 países no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2023 da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). O Brasil está em 92º. 

De acordo com a instituição, embora o  jornalismo tenha liberdade garantida por lei, jornalistas são frequentemente alvo de violência policial e de abusos, com jornalismo investigativo persistindo em meios digitais e redes sociais fazendo coberturas ao vivo.