Em 2024, o lema da campanha de prevenção ao suicídio Setembro Amarelo no Brasil é “Se precisar, peça ajuda!”, ressaltando a importância da representação correta das pessoas que lidam com desafios de saúde mental, a fim de que elas se sintam confortáveis para buscar o apoio necessário. 

A forma como são retratadas as pessoas que experimentam problemas de saúde mental que podem levar ao ato extremo de tirar a própria vida tem sido objeto de estudos, pesquisas e análises de especialistas. 

Nesta reportagem especial (relatório completo aqui), trazemos um olhar internacional, com a colaboração de correspondentes brasileiros em quatro países, sobre como a representação adequada e canais eficientes de diálogo podem mudar os rumos da crise da saúde emocional.

Veja aqui um resumo da edição. 

Suicídio, esgotamento, ansiedade, depressão, distúrbios alimentares e de sono, síndrome do pânico, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), consumo de substâncias, autismo e mal de Alzheimer têm sido discutidos mais abertamente na imprensa, nas redes sociais, nas corporações, nas famílias e entre amigos, sobretudo desde a crise do coronavírus.
 
A Lei 14.831/2024, que criou este ano no Brasil o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental, é mais um reflexo da atenção a uma questão historicamente cercada de medo, preconceito e desconhecimento, e que assumiu uma proporção gigantesca com a pandemia. 

No primeiro ano da Covid-19, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em impressionantes 25%, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Mas ao mesmo tempo em que fez disparar problemas emocionais, como reflexo do isolamento, da incerteza e dos problemas profissionais e financeiros, a pandemia do coronavírus deixou um legado: colocou o tema na pauta da mídia e na agenda das empresas, encorajando a compreensão e a busca de ajuda, tema do Setembro Amarelo em 2024. 

Ao mesmo tempo em que os jornalistas e comunicadores estão entre os mais afetados pela crise do burnout, eles ocupam um papel central para aprimorar a representação, os canais de ajuda e a forma de dialogar sobre questões emocionais, nas empresas e fora delas. 

Saúde Mental e ESG: o valor da sustentabilidade humana 

Embora a descrição clássica dos pilares ESG (Enviroment, Social and Governance), não mencione explicitamente o cuidado com a saúde emocional de funcionários, clientes e consumidores como uma obrigação, a tomada de consciência da sociedade fez com que iniciativas para promover o bem-estar mental entrassem na agenda das corporações, já que demonstram a atenção das companhias com seus públicos.

Em uma análise feita para a Deloitte, a consultora canadense Lisa MacVicar defende que as empresas passem a recolher dados sobre o bem-estar emocional em seus relatórios.

Em sua pesquisa anual sobre Bem-Estar no Trabalho, a Deloitte afirma que as empresas devem focar na sustentabilidade humana para criar um ciclo benéfico no qual a melhoria dos resultados humanos melhora os resultados organizacionais. 

Isso significa criar valor para as pessoas como seres humanos, deixando-as com maior saúde e bem-estar, competências mais fortes e maior empregabilidade, oportunidades de carreira e progresso em direção à equidade, maior pertencimento e maior conexão com o propósito da companhia. 

Um estudo da Universidade da Flórida analisou como dois processos podem beneficiar a saúde mental dos funcionários: a comunicação vertical, entre empresa e funcionários, e os programas que facilitam a comunicação horizontal, entre colegas.

Os pesquisadores descobriram que os funcionários se sentem mais confortáveis ao compartilhar seus sentimentos e buscar apoio entre colegas com quem têm uma conexão próxima, uma forma percebida como mais autêntica, especialmente em contextos de trabalho remoto ou híbrido. 

Pandemia e saúde mental nas empresas 

O consultor de cultura organizacional Nélio Bilate convive de perto com causas e efeitos do burnout no universo empresarial há vários anos, e acompanhou as transformações causadas pela pandemia: 

“Ela deixou como um dos legados a descoberta de que se pode trabalhar de casa, ou mais ainda, de qualquer lugar para qualquer lugar. Isso mudou o conceito de trabalho e de permanência.”

Bilate observa que a representação de saúde mental na mídia ainda precisa evoluir, pois atualmente vai para dois extremos: ou muito espiritualizada, ou muito sobre a patologia, uma abordagem pelos aspectos psiquiátricos. 

Cuidando de quem informa: o que leva jornalistas e RPs ao burnout e como responder ao desafio

Não é uma missão fácil para profissionais de imprensa, eles próprios severamente afetados pela crise do burnout e ao mesmo tempo encarregados de relatar temas pesados como violência, tragédias naturais e suicídio.

Em entrevista à correspondente brasileira em Los Angeles Eloá Orazem, a psicóloga americana Emily Sachs, consultora do Dart Center for Journalism and Trauma da Columbia University, aponta que é mais desafiador ser um jornalista nos dias atuais devido à hiperconectividade e à facilidade de o público acessá-lo por meio das redes sociais.

Isso muitas vezes resulta em abusos e agressões que afetam o equilíbrio emocional e podem influenciar a produção jornalística. 

A polarização política, intensificada por figuras como Donald Trump, também contribui para um ambiente hostil e estressante, com ataques à imprensa e exposição a conteúdos perturbadores.

A situação é agravada pela crise financeira que afeta veículos de mídia, especialmente jornais locais, que enfrentam fechamentos e fusões.

Estudo Revela Burnout Generalizado entre Jornalistas nos EUA

O mais recente estudo do Reynolds Journalism Institute (RJI) da Universidade de Missouri, divulgado em fevereiro de 2024, revelou um cenário alarmante de burnout entre jornalistas nos Estados Unidos.

A pesquisa ouviu mil atuais, futuros e ex-profissionais da imprensa de todos os estados americanos e constatou que 80% dos entrevistados consideram o burnout um problema sério. O estudo aponta que o esgotamento atingiu “um estágio crítico e urgente” na indústria de notícias.

Entre os principais fatores que contribuem para o burnout estão a produção de cada vez mais conteúdo para várias plataformas, com cada vez menos recursos e segurança no emprego, além de pressões crescentes do público e dilemas éticos em coberturas sensíveis.

A pesquisa também indicou que 84% dos jornalistas em atividade e 88% dos que deixaram a profissão admitiram ter sofrido burnout, e dois terços dos ex-profissionais afirmam que o esgotamento foi um fator decisivo para abandonar o jornalismo.

O estudo do RJI sugere medidas para mitigar o burnout, incluindo maior flexibilidade na escala de trabalho, mudanças na cultura das redações, práticas de gestão mais equilibradas e melhor gerenciamento de tempo, que são exemplos de soluções que não envolvem altos custos. 

Crise de saúde mental afeta jornalistas freelancers na Itália, revela estudo

Na Itália, outro país com indústria de mídia sólida, a situação não é melhor, como relata a correspondente do MediaTalks Fernanda Massarotto. 

Um estudo conduzido pela IrpiMedia, envolvendo 588 jornalistas freelancers, revelou que a precariedade no emprego, pressão por notícias inéditas e baixa remuneração estão contribuindo para altos níveis de estresse e o esgotamento mental da categoria.

Cerca de 87% dos entrevistados relataram estar sob estresse e 73% mencionaram ansiedade, enquanto metade dos freelancers expressou sentir solidão e a sensação de não ser compreendido.

A pesquisa também aponta que os freelancers estão frequentemente relutantes em reportar seu estado emocional por medo de serem vistos como fracos ou imaturos. Esse silêncio agrava os sintomas de estresse, depressão e ataques de pânico, que são comuns entre os trabalhadores autônomos da imprensa.

Organizações como a Federação Nacional da Imprensa Italiana (FNSI) têm pressionado por melhores condições de trabalho, mais flexibilidade e apoio psicológico para jornalistas. 

PEN America recomenda apoio entre pares para combater impacto do assédio digital

A presença digital de figuras públicas, incluindo jornalistas mas também políticos e celebridades, tem sido associada ao aumento de casos de burnout devido ao assédio online, que frequentemente se traduz em ameaças físicas.

Em resposta a essa preocupação crescente, a PEN America, organização que defende a liberdade de expressão, lançou um relatório em abril destacando o apoio entre pares como uma abordagem promissora para mitigar os danos emocionais, psicológicos e físicos causados por abusos na internet.

O estudo, desenvolvido em parceria com a Universidade Columbia, baseia-se em entrevistas com jornalistas e análises de profissões altamente estressantes.

Ele ressalta que, embora desconectar da internet não seja viável para muitos profissionais, especialmente jornalistas, o apoio mútuo entre colegas e mediado por profissionais treinados pode fornecer um espaço seguro para discutir experiências e buscar ajuda.

Criminalidade na Suécia afeta jornalistas e público

Cláudia Wallin correspondente Suécia
Cláudia Wallin 

Nos últimos anos, a Suécia tem se transformado em uma espécie de capital europeia do crime organizado, com um aumento significativo de tiroteios e explosões que espalham medo e insegurança por todo o país, como conta a correspondente do MediaTalks Claudia Wallin. 

O aumento da criminalidade e da violência trouxe à tona a questão da saúde mental, tanto para os cidadãos quanto para os jornalistas que cobrem esses eventos traumáticos.

Ulrika Hyllert, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas da Suécia, enfatiza a importância de apoio psicológico para os profissionais da mídia.

Lasse Weirup, um renomado jornalista especializado em cobrir o crime organizado, descreve a situação como deprimente.

Em entrevista ao MediaTalks, ele ressalta que, apesar do apoio oferecido nas redações no país, a crescente insegurança e a escalada de violência afetam profundamente a sociedade sueca e aqueles que reportam esses eventos diariamente.

Trauma e a importância de saber a hora de parar 

Durante o Festival Internacional de Jornalismo de Perugia deste ano, um dos painéis discutiu o impacto emocional sobre a saúde mental de jornalistas causado pela cobertura de situações traumáticas, como guerras e desastres naturais.

Moderado por Gavin Hess, do Dart Center para Jornalismo e Trauma. da Universidade Columbia, o debate contou com a participação de profissionais de diferentes países, que compartilharam experiências desde a cobertura de conflitos em Gaza e catástrofes naturais no Nepal até a assistência a jornalistas em zonas de conflito como o Iêmen e o Afeganistão.

Os participantes chegaram ao consenso de que o impacto do trauma afeta todos os jornalistas que cobrem sofrimento, independentemente de estarem no front ou em redações seguras.

O painel ressaltou a importância da sensibilidade dos editores ao lidar com repórteres em situações de estresse extremo, e que muitas vezes é necessário tomar a decisão de fazê-los aceitar uma pausa. 

Gavin Hess destacou que o autocuidado é fundamental para a autopreservação e para garantir a continuidade de um bom jornalismo.

Esgotamento na Indústria Criativa: Como Encontrar Equilíbrio Entre Trabalho e Prazer

O esgotamento na indústria criativa, onde trabalho e diversão muitas vezes se confundem, é uma realidade que pode ser evitada com estratégias adequadas, ensina Agata Lulkowska, Professora de Produção Cinematográfica da Staffordshire University. 

“Profissionais apaixonados e dedicados, como artistas, escritores e pesquisadores, frequentemente enfrentam burnout devido à dificuldade em separar trabalho e lazer, além da pressão constante que sofrem para serem produtivos e atenderem às expectativas.”

Ela afirma que a recuperação do esgotamento envolve encontrar um equilíbrio entre responsabilidade e prazer.

“Atividades que podem ser vistas tanto como tarefas quanto como hobbies devem ser realizadas com motivação intrínseca, focando no prazer e não apenas nas expectativas sociais ou profissionais.”

A especialista destaca também a importância de eventos não estruturados para inspirar a criatividade, reforçando que escutar o corpo e a mente é essencial para evitar o burnout.

Declarações de Líderes Podem Aumentar o Estigma sobre Saúde Mental 

A imprensa não está sozinha na missão de informar e combater o estigma em torno da saúde mental.

O discurso público, seja de políticos, celebridades ou de líderes empresariais dentro de suas organizações, pode ajudar ou atrapalhar.  Um caso emblemático aconteceu no Reino Unido no início deste ano.

Para defender uma revisão na política de concessão de auxílio financeiro para pessoas com problemas emocionais, o governo então liderado pelo ex-primeiro-ministro Rishi Sunak adotou a narrativa de minimizar essas situações, criticando uma suposta”cultura do atestado” que estaria levando médicos do sistema público de saúde a tratarem ansiedades normais da vida como doenças. 

A posição foi criticada por organizações de saúde mental como a Mind UK, que alertam para o risco de piorar preconceitos e desinformação em um país com taxa de suicídio crescente. 

O impacto das redes sociais na saúde mental dos jovens: medidas e desafios

Desde o vazamento de pesquisas internas do Facebook mostrando impacto sobre o equilíbrio emocional de jovens usuárias do Instagram, em 2021, a responsabilidade das redes sociais em proteger a saúde mental dos jovens tem sido amplamente discutida, especialmente após o aumento de casos de cyberbulling, automutilação e suicídio entre adolescentes. 

Uma pesquisa da OMS revelou que uma em cada seis crianças na Europa é vítima de cyberbullying, uma das principais causas de suicídio infantil. 

Contudo, propostas para proibir a venda de smartphones e o uso de redes sociais por menores de 16 anos têm sido criticadas por figuras como Ian Russel, pai de Molly Russel, uma jovem britânica que tirou a própria vida aos 14 anos após acessar conteúdo prejudicial online.

Russel está entre os que defendem uma regulamentação mais robusta e efetiva em vez de restrições gerais.

Unaliving’: pesquisa expõe falhas na moderação

Um estudo recente feito pela  Fundação Molly Rose, criada por Russel em memória da filha, revelou que quase metade das postagens mais engajadas no Instagram e no TikTok eram prejudiciais, mas continuavam sendo recomendadas pelos algoritmos e visualizadas por grandes volumes de usuários.

A pesquisa destacou o uso de termos disfarçados, como “KYS” (Kill Yourself), para contornar os filtros das plataformas, expondo a falha na moderação eficaz de conteúdo prejudicial.

Ian Russel critica fortemente as redes sociais por não filtrarem adequadamente o conteúdo prejudicial e pede medidas mais eficazes para proteger os jovens.

“Assim como Molly foi impactada pelo conteúdo nocivo que a bombardeou, encontramos evidências de algoritmos distribuindo conteúdo prejudicial para literalmente milhões de jovens. Isso deve parar”.

Mind UK e a Importância da Linguagem na Saúde Mental

O mote da campanha Setembro Amarelo deste ano, a busca de ajuda, coloca em evidência a necessidade de combater o estigma.

Isso não significa deixar de tratar de temas complexos como doenças mentais e suicídio, mas fazer isso da forma correta – da abordagem às palavras empregadas. 

Muitas organizações oferecem guias úteis para jornalistas, produtores de conteúdo e pessoas comuns que escrevem sobre esses temas em suas mídias sociais.

Uma delas é a Mind UK, uma destacada ONG britânica. O documento destaca a necessidade de não simplificar as causas dos problemas de saúde mental, que frequentemente resultam de fatores complexos como dificuldades financeiras e discriminação.

Também recomenda evitar o uso do termo “resiliência” como uma solução universal e alerta contra a publicação de histórias de vitória sobre uma doença mental que possam fazer outros se sentirem inadequados.

Uma pesquisa da Mind revela que 66% dos entrevistados acham que uma linguagem mais cuidadosa poderia reduzir o estigma e o desconforto associados à saúde mental.

Suicídio na Mídia: Risco de Estímulo ou Oportunidade de Prevenção?

Outro debate em torno da questão da representação em saúde mental é a forma de noticiar suicídio. O pesquisador Michael Westerlund, da Universidade de Estocolmo, aponta que o suicídio ainda é um tema tabu, muitas vezes evitado pela mídia por medo de incentivar outros a cometerem o ato.

Ele defende que a mídia deve tratar o assunto com mais frequência e responsabilidade, abordando as causas do suicídio e de como buscar ajuda.

Westerlund critica dois mitos comuns: o de que discutir suicídio pode estimular o ato e o de que a tendência ao suicídio não pode ser revertida. Ele afirma que a prevenção é possível e que muitas pessoas que tentaram suicídio tinham dúvidas até o último momento.

A OMS desenvolveu um manual para ajudar os que noticiam suicídio a tratarem da questão com responsabilidade, com dicas que são úteis não apenas para jornalistas, mas para qualquer pessoa que dialogue sobre esse tema cada vez mais presente na sociedade.