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Inteligência artificial

Kirk com Jesus, sermões bíblicos e mais: como a IA está sendo usada para criar um mártir digital

por Art Jipson | Professor de Sociologia, Universidade de Dayton (EUA)

Imagem gerada com IA mostrando Charlie Kirk abraçado por figura de Jesus Cristo

Imagem gerada por IA (@TedCruz, via X).



A morte violenta de Charlie Kirk, cofundador da Turning Point USA, desencadeou uma onda de homenagens digitais — muitas criadas por inteligência artificial — que o colocam como mártir e até figura sacralizada nos Estados Unidos


Uma imagem gerada por IA circulando nas redes sociais mostra Charlie Kirk abraçando Jesus. Outra o retrata com asas de anjo e auréola. E há ainda outra de Kirk ao lado de George Floyd nos portões do céu.

Quando figuras políticas ou culturais de destaque morrem nos EUA, a lembrança de suas vidas muitas vezes tende à hagiografia.

E foi isso que vem acontecendo desde o assassinato do ativista conservador e cofundador da Turning Point USA Charlie Kirk.

O termo hagiografia vem da tradição cristã de escrever sobre vidas de santos, mas a prática frequentemente transborda para a política e a mídia seculares. A sociologia chama isso de “sacralização da política”.

Assassinatos e mortes violentas costumam ser interpretados em termos sagrados: a pessoa se torna um mártir secular que fez um sacrifício heróico.

Ela é retratada como moralmente justa e espiritualmente pura.

Isso é, até certo ponto, uma parte natural do luto.

Mas observar mais de perto por que isso acontece — e como a internet acelera esse processo — oferece pistas importantes sobre a política dos EUA hoje.

De presidentes a líderes de protesto

A construção da imagem póstuma de Ronald Reagan é um exemplo clássico desse processo.

Após sua presidência, líderes republicanos lapidaram sua memória até transformá-lo em um símbolo do triunfo conservador, minimizando escândalos como o Irã-Contras ou o ceticismo inicial de Reagan sobre direitos civis.

Hoje, Reagan é lembrado menos como um político complexo e mais como um santo dos mercados livres e do patriotismo.

Entre liberais, Martin Luther King Jr. passou por transformação comparável, embora de outra forma. Suas críticas ao capitalismo, ao militarismo e ao racismo estrutural são frequentemente minimizadas nas lembranças mais correntes, restando uma imagem suavizada de sonhador pacífico.

O feriado anual, as ruas rebatizadas e os murais públicos o homenageiam, mas também domesticam seu legado em uma história universalmente palatável de unidade.

Até figuras mais contestadas, como John F. Kennedy ou Abraham Lincoln, mostram o mesmo padrão. Seus assassinatos foram seguidos por ondas de luto que os elevaram a um status quase mítico.

Décadas após a morte de Kennedy, seu retrato pendia em casas de muitos católicos americanos, frequentemente ao lado de iconografia religiosa como estatuetas da Virgem Maria.

Lincoln, por sua vez, tornou-se uma espécie de santo cívico: seu memorial em Washington, D.C., parece um templo, com palavras de seus discursos gravadas nas paredes.

Por que acontece e o que significa

A hagiografia de figuras públicas cumpre vários propósitos. Ela atende necessidades humanas profundas, ajudando comunidades enlutadas a lidar com a perda ao fornecer clareza moral diante do caos.

Ela também permite que movimentos políticos consolidem poder ao santificar seus líderes e desencorajar dissenso. E tranquiliza os seguidores de que sua causa é justa — até cósmica.

Em um ambiente polarizado, elevar uma figura a santo faz mais do que homenageá-la. Transforma uma disputa política em uma luta sagrada.

Se você vê alguém como mártir, então a oposição ao seu movimento não é apenas discordância, é profanação. Nesse sentido, a hagiografia não trata simplesmente de lembrar os mortos: ela mobiliza os vivos.

Mas há riscos. Uma vez que alguém é enquadrado como santo, a crítica se torna tabu. Quanto mais sacralizada a figura, mais difícil discutir suas falhas, erros ou ações controversas.

A hagiografia achata a história e estreita o debate democrático.

Depois da morte da rainha Elizabeth II em 2022, por exemplo, o luto público no Reino Unido e no exterior rapidamente elevou seu legado a símbolo de estabilidade e continuidade, com tributos em massa, imagens virais e cerimônias globais transformando um reinado complexo em uma história simplificada de devoção e serviço.

Isso também alimenta a polarização. Se o líder de um lado é um mártir, então o outro lado deve ser vilanesco. O enquadramento é simples, mas poderoso.

Charlie Kirk e o “turbo” digital

No caso de Kirk, muitos de seus apoiadores o descreveram como uma figura que buscava a verdade, com sua morte sublinhando uma mensagem moral mais profunda.

Na cerimônia fúnebre realizada no Arizona, o presidente Donald Trump o chamou de “mártir da liberdade americana”.

Nas redes sociais, a Turning Point USA e a conta oficial de Kirk no X o descreveram como “o maior mártir da liberdade de expressão dos EUA”.

Ao fazer isso, elevaram sua morte a símbolo de batalhas mais amplas sobre censura.

Ao enfatizar o fato de que ele morreu simplesmente por estar falando, também reforçaram a ideia de que liberais e a esquerda recorreriam mais facilmente à violência para silenciar inimigos ideológicos, mesmo quando as evidências apontam o contrário.

Santificação em escala industrial

Tratar figuras públicas como santos não é uma coisa nova, mas a velocidade e a escala desse processo são.

Nas últimas duas décadas, as redes sociais transformaram a hagiografia de uma evolução cultural lenta a um ciclo de produção acelerado.

Memes, transmissões ao vivo e hashtags agora permitem que qualquer pessoa canonize alguém que admira.

Quando o astro do basquete Kobe Bryant morreu em 2020, as redes sociais foram inundadas em poucas horas com imagens devocionais, murais e compilações de vídeo que o apresentavam como mais do que um atleta: ele se tornou um ícone espiritual da perseverança.

Da mesma forma, após a morte de Ruth Bader Ginsburg, o ecossistema do meme “Notorious RBG” rapidamente se expandiu para incluir retratos digitais e produtos que a retratavam como uma defensora sagrada da justiça.

Kirk com Jesus Cristo: imagens e áudios criados com IA

Os mesmos elementos cercaram Charlie Kirk. Em poucas horas após seu assassinato, memes apareceram com Kirk coberto por uma bandeira americana, sendo carregado por Jesus.

Nos dias seguintes, áudios gerados por IA de Kirk, no estilo “sermões”, começaram a circular online, enquanto apoiadores compartilharam versículos bíblicos que afirmavam corresponder exatamente ao horário de sua morte.

Em conjunto, esses atos enquadraram sua morte em termos religiosos: não foi apenas um assassinato político — foi um momento de significado espiritual.

Clipes e versículos se espalham com facilidade nas redes sociais, onde narrativas sobre figuras públicas podem se solidificar em poucas horas, muitas vezes antes que os fatos sejam confirmados, deixando pouco espaço para nuance ou investigação.

Memes e vídeos fáceis de criar também permitem que usuários comuns participem de um processo de sacralização, tornando-o mais um esforço de base do que algo imposto de cima para baixo.

Em outras palavras, a cultura digital transforma o que antes era o trabalho lento de monumentos e livros didáticos em uma religião popular viva e flexível da cultura e da política.

Rumo a uma política mais clara

A hagiografia não vai desaparecer. Ela atende a necessidades emocionais e políticas com eficácia.

Mas reconhecer seus padrões ajuda cidadãos e jornalistas a resistirem às distorções. A tarefa não é negar o luto ou a admiração, e sim preservar espaço para nuances e responsabilização.

Nos EUA, onde religião, cultura e política frequentemente se entrelaçam, reconhecer que a santificação na política é sempre construída — e muitas vezes estratégica — pode permitir que as pessoas honrem a perda sem deixar que o mitificação dite os termos da vida pública.


Este artigo foi publicado originalmente em inglês no portal acadêmico The Conversation e é republicado aqui sob licença Creative Commons.

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