Londres – Em meio a um debate sobre reforma da legislaรงรฃo criminal nas Ilhas Maldivas, um artigo dentro da โEvidence Billโ, ou Lei das Evidรชncias, a ser votada pelo Parlamento maldivo, permitirรก que a Justiรงa obrigue jornalistas a quebrar o sigilo de fonte se os magistrados considerarem a informaรงรฃo relevante para investigaรงรตes criminais.
A iniciativa do paรญs, que ocupa a 72ยบ posiรงรฃo no รญndice de liberdade de imprensa da Repรณrteres sem Fronteiras, se soma a diversas outras tentativas de cercear o trabalho da imprensa no leste europeu e na รsia, enquadrando publicaรงรตes como agentes estrangeiros e evocando o fator de seguranรงa nacional, como visto em Singapura, Rรบssia e Hong Kong.
Contudo, a tentativa de expor fontes se coloca como um novo desafio ร liberdade de imprensa, pois a proteรงรฃo garante a seguranรงa dos profissionais e de pessoas que revelam informaรงรตes capazes de subsidiar reportagens que denunciam crimes como trรกfico e corrupรงรฃo.
Enviado pelo governador das Maldivas, Nigel Phillips, ao Majlis do Povo (como รฉ chamado o Parlamento unicameral do paรญs), o artigo 136 acrescenta duas brechas que permitem com que, se um tribunal entender que quebrar o sigilo de fonte nรฃo vai causar impacto negativo ou significativamente menos negativo ao indivรญduo.
Se o impacto da revelaรงรฃo de uma fonte nรฃo afetar significativamente a capacidade dos jornalistas de encontrar fontes de informaรงรตes factuais, o sigilo poderรก ser quebrado, caso a lei seja aprovada da forma proposta.
Sigilo de fonte faz parte da liberdade de imprensa, afirma IFJ
A Federaรงรฃo Internacional de Jornalistas (IFJ), a Associaรงรฃo de Jornalistas das Maldivas (MJA), a Anistia Internacional, o Maldives Editors Guild e a Transparency Maldives se uniram contra a clรกusula do Artigo 136 da lei sob anรกlise.
Relacionadas
Juntas, as entidades emitiram uma declaraรงรฃo pedindo a revogaรงรฃo da clรกusula em defesa do Artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polรญticos, que assegura ao jornalista a preservaรงรฃo de suas fontes de modo que “nenhuma pessoa serรก obrigada a revelar a fonte de qualquer informaรงรฃo que seja adotada, divulgada ou publicada”.
Para a IFJ, o artigo que quebra o sigilo de fonte รฉ uma aรงรฃo profundamente perturbadora e, “se aprovado, prejudica totalmente todo o progresso da reforma da mรญdia que foi feito no paรญs. Isso vai contra os padrรตes internacionais de liberdade de imprensa e nos opomos veementemente a essa tentativa de asfixiar a mรญdia nas Maldivas”.
De acordo com a MJA, o impacto negativo que uma decisรฃo como essa tem sobre a liberdade de imprensa รฉ “bastante claro e reverterรก o progresso atingido. A Associaรงรฃo de Jornalistas das Maldivas apela ao governo e ao Majlis do Povo para tomar medidas imediatas para restaurar a confianรงa no direito jornalรญstico de proteรงรฃo da fonteโ.
Legislaรงรฃo das Maldivas foi elaborada para reestruturar processos criminais
A Procuradoria-Geral da Repรบblica das Maldivas declarou que este projeto de lei se dirige a organizar tipos de provas, os graus de provas apresentadas, e ร extensรฃo em que as provas devem ser apresentadas em um caso criminal, entre outros detalhes processuais.
A nova lei deve reger o processo de obtenรงรฃo de provas, procedimentos e etapas de exame e interrogatรณrio.
Leia tambรฉm | De quem รฉ a culpa pela invasรฃo do Capitรณlio? Depende da TV a que cada americano assiste, diz pesquisa
Os cenรกrios nos quais esta lei pode ser implementada, tambรฉm sรฃo especificados pelo escritรณrio da PGR. Questรตes legislativas, civis e judiciais, bem como aquelas que requerem o envolvimento de instituiรงรตes governamentais, sรฃo algumas das circunstรขncias em que a lei sob debate pode ser aplicada.
A PGR tambรฉm especificou como a evidรชncia serรก categorizada com base na origem, nรญvel de significรขncia e relevรขncia para o caso — neste ponto tocando a atividade da imprensa, quando reportagens, por exemplo, forem anexadas a processos judiciais.
Maldivas tinha subido 7 ponto no รญndice da RSF
As Ilhas Maldivas, mais conhecidas pelos cenรกrios paradisรญacos, figura em na 72ยบ no ranking anual de liberdade de imprensa da Repรณrteres sem Fronteiras, e havia subido 7 posiรงรตes em relaรงรฃo a 2020. O Brasil caiu quatro pontos.
Leia mais: Brasil cai quatro posiรงรตes no Ranking de Liberdade de Imprensa da RSF
Na ediรงรฃo deste ano, a organizaรงรฃo fez um histรณrico da situaรงรฃo no paรญs:
O governo liderado por Abdulla Yameen, que foi eleito presidente em 2013, era muito hostil ร liberdade de imprensa e as Maldivas caรญram constantemente no รndice Mundial de Liberdade de Imprensa, de 103ยบ em 2013 para 120ยบ em 2018.
Sua derrota para o desafiante Mohamed Solih nas eleiรงรตes presidenciais em setembro de 2018 aumentou as esperanรงas porque Solih havia feito algumas promessas especรญficas para melhorar a liberdade de imprensa.
Segundo a entidade, uma promessa inicial foi cumprida: dois meses apรณs as eleiรงรตes, o parlamento revogou a “draconiana lei de difamaรงรฃo de 2016”, que tinha sido amplamente utilizada pelo governo anterior para perseguir os meios de comunicaรงรฃo independentes, especialmente a Raajje TV, que teve de pagar um total de 215.000 euros em multas por supostamente difamar Yameen.
A RSF afirmou em abril que a polรญcia continuava a usar violรชncia fรญsica contra jornalistas que cobrem manifestaรงรตes, mas que percebia progressos encorajadores na luta contra a impunidade.
Leis vem sendo usadas contra liberdade de imprensa
Artifรญcios legais tรชm sido usados amplamente na tentativa de controlar a atividade da mรญdia, em regimes ainda considerados democrรกticos.
Singapura prepara uma nova lei de comunicaรงรฃo que transforma a cidade-Estado em uma naรงรฃo com poder de censurar a liberdade de imprensa com base no argumento do โagente estrangeiroโ, podendo o governo punir veรญculos de imprensa e jornalistas antes mesmo de reportagens serem publicadas, o que configura censura prรฉvia.
A Rรบssia usa o mesmo argumento para sufocar financeiramente publicaรงรตes crรญticas ao governo de Vladimir Putin. Sites independentes e portais de expressรฃo no paรญs estรฃo tendo que fechar, uma vez que a lei criou uma lista de publicaรงรตes consideradas “indesejรกveis”, que devem revelar seus financiadores, o que acaba afugentando patrocรญnio.
Em Hong Kong, que vem tendo uma escalada de influรชncia do governo chinรชs, a acusaรงรฃo de ligaรงรฃo com agentes estrangeiros รฉ usada constantemente para suprimir a liberdade de imprensa, tendo como caso mais visรญvel o fechamento do jornal Apple Daily, atรฉ entรฃo a grande voz prรณ-democracia no territรณrio autรดnomo.
Em outros casos, o Camboja criou um comitรช para fiscalizar a mรญdia, com potencial de atuar como mecanismo censor, a Polรดnia tem em tramitaรงรฃo uma lei que proรญbe grupos estrangeiros de controlar veรญculos de mรญdia, e Belarus reprime a atividade jornalรญstica com prisรตes, espancamentos e invasรฃo de redaรงรตes.