Londres – O Nobel da Paz 2021 dividido entre os jornalistas Dmitry Muratov, da Rรบssia, e Maria Ressa, das Filipinas, foi um grande alerta para atentados ร  liberdade de imprensa que ocorrem em todo o mundo, muitos deles atingindo mulheres que se dedicam ร  missรฃo de informar. 

No entanto, nem um prรชmio tรฃo importante como esse foi capaz de cessar ou pelo menos reduzir os ataques sofridos por Ressa. A luta contra a censura faz com que centenas de outras mulheres jornalistas tambรฉm sejam perseguidas por governos em diversos paรญses. 

No Dia Internacional da Mulher, conheรงa outras profissionais de imprensa que se tornaram mundialmente conhecidas por enfrentarem assรฉdio e ameaรงas, como a brasileira Patricia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. 

Nรบmero de jornalistas mulheres presas bate recorde

A ONG Repรณrter Sem Fronteiras (RSF) publicou, em dezembro, relatรณrio que apontou um nรบmero recorde de mulheres jornalistas presas no mundo: 60 โ€“ um terรงo (33%) a mais do que no ano anterior. No total, eram 488 profissionais da imprensa de ambos sexos detidos por motivos relacionados ร  profissรฃo.

Segundo o secretรกrio-geral da RSF, Christophe Deloire, o nรบmero alto de jornalistas em detenรงรฃo arbitrรกria advรฉm principalmente de trรชs regimes ditatoriais: China, Bielorrรบssia e Mianmar.

“Isso รฉ reflexo do reforรงo do poder ditatorial em todo o mundo, do acรบmulo de crises e da falta de escrรบpulos por parte desses regimes. Tambรฉm pode ser o resultado de novas relaรงรตes de poder geopolรญtico em que regimes autoritรกrios nรฃo estรฃo sendo submetidos a pressรฃo suficiente para conter suas repressรตesโ€.

O fato das Filipinas serem comandadas por um presidente eleito, Rodrigo Duterte, em vez de um ditador que tomou o paรญs pela forรงa, nรฃo ameniza a censura sofrida por Maria Ressa.

Em fevereiro, a subsecretรกria de Comunicaรงรตes da presidรชncia disse que iria processar o Rappler, portal de notรญcias da ganhadora do Nobel, por “desinformaรงรฃo”.

Maria Ressa, em conferencia virtual Skoll (reproduรงรฃo)

A declaraรงรฃo, publicada no Facebook, foi uma resposta ao artigo de fact checking (verificaรงรฃo de fatos) que rotulou como mentira uma fala da integrante do governo.

Assim como ela, muitas outras sofrem assรฉdio e perseguiรงรฃo, muitas vezes sem a proteรงรฃo de uma grande organizaรงรฃo de mรญdia. 

Jornalista brasileira รฉ exemplo de mulher perseguida por causa da profissรฃo

Este nรฃo foi o caso da brasileira Patrรญcia Campos Mello, da Folha de S.Paulo- Ela รฉ citada em publicaรงรตes internacionais como exemplo de assรฉdio a mulheres jornalistas, depois de publicar matรฉrias sobre o uso polรญtico de plataformas de mensagem como o WhatsApp pela campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, 2018.

Mulher jornalista assรฉdio
Patricia Campos Mello – Foto: divulgaรงรฃo Instituto Reuters

Em 2021, a jornalista ganhou dois processos movidos contra o presidente e contra seu filho Eduardo, cabendo indenizaรงรตes pelos danos causados a ela e a familiares. Em marรงo passado, compartilhou a histรณria na conferรชncia principal do Instituto Reuters para Estudos de Jornalismo. 

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Patrรญcia Campos Mello: โ€œser jornalista no Brasil รฉ ser alvo de uma mรกquina de รณdioโ€

Jornalista chinesa desafiou censura ao filmar inรญcio da pandemia

A China figura em todos os rankings de organizaรงรตes de defesa da liberdade de imprensa como a maior carcereira de jornalistas do mundo, nem todos com o apoio de empresas jornalรญsticas, tornando-os ainda mais vulunerรกveis. 

Entre os presos estรก  Zhang Zhan, jornalista cidadรฃ que desafiou a censura na China para revelar ao mundo por meio de vรญdeos em redes sociais a situaรงรฃo da pandemia em Wuhan, a cidade em que o coronavรญrus foi detectado primeiro, e pagou caro por isso.

Residente de Xangai, Zhan foi sozinha para Wuhan em 1ยบ de fevereiro de 2020 e utilizou as plataformas WeChat, Twitter e YouTube para publicar entrevistas com residentes e imagens de crematรณrios, estaรงรตes de trem, hospitais e do Instituto de Virologia da cidade, enfurecendo o governo. 

A ousadia valeu a ela uma sentenรงa de quatro anos de prisรฃo por โ€œdisseminar informaรงรตes falsas na imprensaโ€, em maio de 2020. Em protesto, Zhan iniciou uma greve de fome e sua saรบde estรก severamente debilitada. 

Em novembro, a organizaรงรฃo Repรณrteres Sem Fronteiras reconheceu a valentia de Zhang Zhan e concedeu a ela o prรชmio Coragem.

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O โ€œsalto para trรกsโ€ da liberdade de imprensa na China: relatรณrio mostra extensรฃo da censura e repressรฃo

Desde que iniciou sua greve de fome, Zhang รฉ alimentada ร  forรงa por uma sonda nasal.  Em outubro passado, a famรญlia revelou que ela estava pesando menos de 40 quilos. 

Jornalista australiana presa na China por ‘informaรงรตes a estrangeiros’

Tambรฉm na China, a jornalista australiana Cheng Lei estรก presa hรก mais de um ano acusada de divulgar informaรงรตes de Estado para paรญses estrangeiros.

A apresentadora Cheng Lei (divulgaรงรฃo) 

Cheng, que trabalhou durante oito anos para o canal estatal chinรชs Global Television Network (CGTN), รฉ mantida sob custรณdia desde 13 de agosto de 2020, mas sua situaรงรฃo sรณ veio a pรบblico em fevereiro do ano passado, quando a prisรฃo foi oficializada. Ela aguarda julgamento e, se condenada, pode receber pena de cinco a dez anos de prisรฃo.

O governo australiano revelou informaรงรตes de que a jornalista foi inicialmente mantida sob prisรฃo domiciliar. Um acordo bilateral permite que representantes do governo australiano vejam a jornalista uma vez ao mรชs. Nesses encontros, a jornalista permaneceria vendada e algemada.

Porรฉm, apuraรงรฃo da emissora australiana ABC afirmou que Cheng foi trancada em uma cela sem ar fresco ou luz natural, teria enfrentado vรกrios interrogatรณrios e perdido o direito a escrever cartas e a fazer exercรญcios.

Apรณs apelos internacionais ao governo com preocupaรงรตes por sua seguranรงa e bem-estar, um porta-voz do governo chinรชs anunciou em setembro de 2021 que Cheng estava sendo detida em um local nรฃo revelado por motivos de seguranรงa nacional.

Jornalista e ativista do #MeToo desaparecida desde setembro

Pior sorte teve a jornalista freelancer e ativista lรญder do movimento #MeToo da China, Sophia Huang Xeuqin, presa em setembro de 2021, pouco antes de viajar da China para Londres para seus estudos de pรณs-graduaรงรฃo. 

(Women’s Media Centre /Divulgaรงรฃo)

Ela teria sido capturada pelas autoridades chinesas ao lado do ativista trabalhista Wang Jianbing, acusado de incitar a subversรฃo do poder estatal. Mas nรฃo hรก notรญcias sobre seu paradeiro. 

Em Hong Kong, Chan Pui-man, editora do extinto jornal prรณ-democracia Apple Daily, foi detida em julho de 2021 por supostamente conspirar com potรชncias estrangeiras. 

O caso de Chan faz parte da repressรฃo do governo ao jornalismo independente e ร  liberdade de imprensa na cidade sob a nova Lei de Seguranรงa Nacional decrectada em 2020. 

Na Turquia, jornalista รฉ presa por ditado popular

Casos de jornalistas presas por governos antidemocrรกticos se espalham pelo mundo.

Na Turquia, a jornalista Sedef KabaลŸ, uma celebridade no paรญs, foi presa em janeiro apรณs citar um provรฉrbio considerado ofensivo ao presidente Recep Erdogan durante uma entrevista e, tambรฉm nas redes sociais.

Sedef KabaลŸ, jornalista turca (foto: Twitter)

O tuรญte que irritou Erdogan, que tem um histรณrico de perseguiรงรตes a jornalistas, nรฃo mencionava diretamente o nome do presidente.

Durante um programa na TELE1 TV em 14 de janeiro, Sedef KabaลŸ disse:

โ€œHรก um famoso ditado: โ€˜Uma cabeรงa coroada ficarรก mais sรกbiaโ€™. Mas vemos que essa nรฃo รฉ a realidade.

Hรก tambรฉm um ditado que รฉ exatamente o oposto: โ€˜Quando o boi chega ao palรกcio, ele nรฃo se torna rei. Mas o palรกcio se torna um estรกbulo.’โ€

Dias depois, ela postou o mesmo provรฉrbio no Twitter.

Polรญticos ligados ao presidente Recep ErdoฤŸan criticaram a fala da jornalista e, horas depois da postagem, ela foi presa.

O recurso contra sua prisรฃo preventiva foi rejeitado pelo tribunal. KabaลŸ segue mantida na Prisรฃo Feminina Bakฤฑrkรถy, em Istambul, e pode ser sentenciada a atรฉ 12 anos e 10 meses, caso seja condenada.

O julgamento do caso serรก iniciado em 11 de marรงo e, atรฉ lรก, a Justiรงa turca jรก decretou que ela segue na prisรฃo.

Governo indiano congela contas de jornalista perseguida hรก anos

Outra profissional de imprensa que ganhou projeรงรฃo global pelas perseguiรงรตes sofridas รฉ a indiana Rana Ayyub, que em fevereiro sofreu mais um golpe de censura do governo de Narendra Modi ao ter suas contas bancรกrias bloqueadas pela segunda vez em seis meses.

Jornalista Rana Ayyub รฉ perseguida por governo indiano (Foto: Reproduรงรฃo/Twitter)
Jornalista Rana Ayyub รฉ perseguida por governo indiano (Foto: Reproduรงรฃo/Twitter)

Uma das mais conhecidas jornalistas mulheres do paรญs, Ayyub sofre assรฉdio de autoridades da รndia hรก vรกrios anos, mas a situaรงรฃo se agravou nos รบltimos meses.

Sua situaรงรฃo รฉ monitorada por entidades internacionais defensoras da liberdade de imprensa, que jรก condenaram as aรงรตes do governo indiano.

Em 2016, Rana Ayyub publicou um livro responsabilizando Modi, ministro-chefe do estado Gujarat no inรญcio dos anos 2000, por um atentado que deixou pelo menos 790 muรงulmanos e 254 hindus mortos na regiรฃo.

Desde entรฃo, a jornalista se tornou um alvo do governo indiano. Ela jรก sofreu diversas ameaรงas de morte e estupro, e foi perseguida de carro pelas ruas de Mumbai.

Na รบltima ofensiva contra a profissional, as autoridades fiscais bloquearam suas contas e outros ativos sob a justificativa de uma investigaรงรฃo de suposta lavagem de dinheiro e fraude fiscal relacionadas a campanhas de financiamento coletivo realizadas por ela para apoiar pessoas afetadas pela covid-19.

Jornalista vietnamita sofre censura e รฉ condenada a nove anos

Assim como ocorreu com Maria Ressa, o reconhecimento internacional a uma ativista e jornalista premiada em 2019 pela organizaรงรฃo Repรณrteres Sem Fronteiras (RSF) por sua luta pela liberdade de imprensa no Vietnรฃ nรฃo foi suficiente para protegรช-la de uma sentenรงa de nove anos de cadeia.

Pham Doan Trang foi sentenciada por um tribunal de Hanรณi no dia 14 de dezembro pelo crime de โ€œpropaganda anti-Estadoโ€, depois de 434 dias detida.

Foto: screenshot Radio Free Asia

E recebeu do juiz uma pena maior do que a que havia sido pedida pela promotoria, desfecho atรญpico atรฉ para os padrรตes do regime autoritรกrio do paรญs, um dos cinco com mais jornalistas presos no mundo, segundo a RSF.

Trang escreveu vรกrios livros e ajudou a fundar veรญculos de mรญdia independentes, incluindo a revista jurรญdica Luta Khoa e o site em inglรชs The Vietnamese, baseado na Califรณrnia, do qual era uma das editoras.

Alรฉm de atuar na imprensa, criou o grupo ambientalista Green Trees, que denuncia infraรงรตes ambientais e jรก teve vรกrios ativistas presos.

Capturada em sua casa na cidade de Ho Chi Minh em 6 de outubro de 2020, a jornalista ficou incomunicรกvel por mais de um ano, atรฉ 19 de outubro de 2021, quando foi transferida para um centro de detenรงรฃo a fim de aguardar o julgamento.

Suspeitando que poderia ser presa, deixou uma carta a ser divulgada caso fosse capturada, no ano passado. Trang pediu que seus apoiadores continuassem sua luta por reformas no processo eleitoral do paรญs; que ajudassem a promover seus livros e que aproveitassem sua prisรฃo para forรงar negociaรงรตes com o governo.

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Resistรชncia de mulheres jornalistas no Afeganistรฃo

A tomada do poder pelo Talibรฃ, que completou seis meses em fevereiro, empurrou a maioria das mulheres jornalistas afegรฃs para fora da profissรฃo. Algumas fugiram do paรญs, enquanto outras pararam de trabalhar.

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Um exemplo de resistรชncia entre mulheres jornalistas do paรญs รฉ o de Zhara Joya, de 29 anos. Ela chegou a se vestir de menino para estudar na primeira fase de domรญnio do grupo extremista. 

No perรญodo da ocupaรงรฃo do Afeganistรฃo por forรงas ocidentais, criou um site de notรญcias dedicado a contar histรณrias de mulheres. Com a volta do Talibรฃ ao poder, buscou asilo em Londres e continua com o site em funcionamento, desafiando a censura local. 

Joya foi escolhida pela revista Time como uma das 12 Mulheres do Ano em 2022. 

Jornalista afegรฃ Zahra Joya รฉ uma das Mulheres do Ano escolhida pela revista Time (Foto: Reproduรงรฃo/Time)
Jornalista afegรฃ Zahra Joya รฉ uma das Mulheres do Ano escolhida pela revista Time (Foto: Reproduรงรฃo/Time)

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Uuma mulher jornalista perdeu a vida em 2022

O Mรฉxico vive uma crescente escalada de violรชncia contra profissionais da imprensa e, somente em 2022, ao menos cinco jornalistas jรก foram mortos em crimes relacionados ร  profissรฃo, segundo a Repรณrter Sem Fronteiras.

Entre eles estรก Lourdes Maldonado Lรณpez, jornalista de Tijuana, que foi morta em seu carro no dia 23 de janeiro com um tiro no rosto, apesar de estar sob defesa do Mecanismo de Proteรงรฃo de Pessoas Defensoras dos Direitos Humanos e Jornalistas da Comissรฃo Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) do Mรฉxico.

Lourdes Maldonado – Foto: YouTube

Uma semana antes, ela tinha vencido um conflito trabalhista que mantinha hรก anos contra uma emissora de televisรฃo local, de propriedade do ex-governador do estado Jaime Bonilla, que negou qualquer relaรงรฃo com o assassinato.

Em 2019, a jornalista havia falado sobre os riscos que corria diretamente com o presidente do Mรฉxico, Andrรฉs Manuel Lรณpez Obrador, durante uma coletiva de imprensa, referindo-se ao processo.

Na ocasiรฃo, Obrador respondeu โ€œEu nรฃo posso fazer nada ou pouco contra esse personagemโ€.

Apรณs a notรญcia da morte de Maldonado o presidente do Mรฉxico declarou que โ€œnรฃo se pode vincular automaticamente um processo trabalhista a um crime, nรฃo รฉ responsรกvel adiantar nenhum julgamentoโ€.

Em fevereiro, o governo anunciou a prisรฃo de trรชs suspeitos de envolvimento com o crime. 

Colรดmbia รฉ condenada por sequestro e estupro de jornalista

Boa parte dos casos de perseguiรงรฃo e assรฉdio ficam impunes, inclusive aqueles patrocinados pelo Estado.

Uma rara exceรงรฃo foi uma decisรฃo histรณrica da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2021. 

A Colรดmbia foi condenada pelo sequestro, tortura e estupro da jornalista Jineth Bedoya, ocorrido 20 anos antes. O crime foi praticado por paramilitares que ela investigava. Na รฉpoca, a jornalista tinha 26 anos. 

Jineth Bedoya (Foto: Twitter)

O tribunal concluiu que as provas contra o Estado colombiano eram โ€œsรฉrias, precisas e consistentesโ€.

O paรญs foi declarado โ€œinternacionalmente responsรกvel pela violaรงรฃo dos direitos ร  integridade e liberdade pessoal, honra, dignidade e liberdade de expressรฃoโ€ de Jineth Bedoya.

Em virtude disso, o estado colombiano foi instado a pagar indenizaรงรตes de US$ 30 mil (R$ 166 mil) ร  jornalista e ร  mรฃe dela.

A condenaรงรฃo determinou tambรฉm, entre outras medidas, a continuidade das investigaรงรตes para responsabilizar os autores pelos crimes praticados  e a realizaรงรฃo de uma campanha de apoio ao movimento #NoEsHoraDeCallar (Nรฃo ร‰ Hora de Calar), criado pela jornalista.

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