Para marcar os seis meses da invasão da Rússia à Ucrânia, a organização de direitos humanos OVD-Info e o site de notícias independente Meduza fizeram um relatório conjunto quantificando como o movimento anti-guerra vem sendo “esmagado” no país, com um arsenal de medidas de censura adotadas pelo governo de Vladimir Putin para silenciar opositores.
Segundo o relatório, “uma ditadura foi realmente instaurada na Rússia”, com ativistas e políticos independentes presos ou forçados ao exílio, processos contra cidadãos comuns que tentam se opor à invasão, concertos e exposições de artistas “não confiáveis” cancelados e a mídia independente censurada ou expulsa do país.
A própria OVD-Info, que defende presos políticos e acompanha a situação dos direitos humanos, é uma das afetadas. Em dezembro passado o site da entidade foi bloqueado na Rússia, e em agosto o mesmo ocorreu com sua comunidade no VK, equivalente ao Facebook russo.
Mais de 16 mil prisões na Rússia, diz ONG de direitos humanos
Segundo a organização aconteceram pelo menos 16.437 prisões relacionadas a protestos contra a guerra de 24 de fevereiro a 17 de agosto.
Este número inclui, além das prisões nas ruas, 38 detenções por publicações anti-guerra nas redes sociais, 118 por uso de símbolos anti-guerra e 62 prisões por protestos contra o conflito.
Um dos casos mais recentes é o da jornalista e ativista de direitos humanos Elena Shukayeva, presa no dia 17 de agosto.
Ex-colaboradora do jornal Novaya Gazeta, fundado e dirigido pelo detentor do prêmio Nobel da Paz Dmitry Muratov, Shukayeva foi acusada de “exibir símbolos de uma organização extremista” e capturada quando estava no tribunal para se defender de duas multas recebidas por manifestações contra a guerra.
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Além das prisões durante e após as manifestações, as autoridades do governo Putin também têm praticado detenções “preventivas” usando um sistema de reconhecimento facial, diz o relatório.
Segundo a OVD-Info, este sistema foi usado no Dia da Bandeira, 22 de agosto, quando pelo menos 33 pessoas foram detidas em Moscou.
Repressão em nível legislativo na Rússia
Desde o início da guerra na Ucrânia, os deputados da Duma, o parlamento da Rússia, aprovaram 16 novas leis repressivas ou emendas a documentos existentes, de acordo com o levantamento da organização de direitos humanos.
Uma delas foi a que criminalizou o que o governo Putin chamou de “fake news” sobre a guerra, punindo jornalistas e cidadãos com até 15 anos de prisão.
Ela teve forte impacto sobre o jornalismo local e internacional. Muitas organizações de mídia estrangeiras fecharam escritórios na Rússia ou removeram seus correspondentes para evitar riscos de punições severas.
Mas o primeiro condenado pela lei foi um político, o deputado Alexei Gorinov. Em julho, ele foi sentenciado a sete anos de prisão por ter se colocado contra um projeto de recreação infantil em seu distrito, sob o argumento de que crianças estavam morrendo na Ucrânia.
A reunião de trabalho em que Gorinov manifestou sua opinião foi gravada em vídeo e ficou disponível no YouTube, despertando a ira do governo.
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Rússia tem 224 réus em processos ligados à guerra
A OVD-Info também contabilizou o número de acusações criminais durante 182 dias de guerra: 224 pessoas se tornaram réus em casos relacionados ao conflito.
O 224º, Yevgeny Roizman, ex-prefeito de Yekaterinburg e um dos políticos mais populares da Rússia, foi detido na quarta-feira, 24 de agosto, exatamente seis meses após o início da invasão.
Nesta quinta-feira, ele participou de uma audiência e foi liberado, mas ficou impedido de viajar e de acessar a internet.
Em agosto, os advogados da OVD-Info começaram a defender réus em cinco novos casos criminais: Alexei Onoshkin, Ilya Gantsevsky, Marina Ovsyannikova, Andrei Pavlov e Sergei Veselov. No total, os advogados da OVD-Info estão conduzindo 22 casos criminais com acusações relacionadas a posições anti-guerra.
No total, desde o início da guerra, foram abertos 3.780 processos sob o artigo 20.3.3 do Código de Infrações Administrativas, que prevê punição para quem “desacreditar o Exército na Rússia, segundo a organização de direitos humanos.
Os líderes da oposição a Putin Ilya Yashin , 39, e Vladimir Kara-Murza , 40, que foram presos por supostamente “divulgar informações falsas” sobre o exército russo, estão atualmente na prisão aguardando julgamento
Há também pelo menos sete casos de perseguição extrajudicial de pessoas que se opõem publicamente à guerra.
A organização registrou agressões como ataques com tinta verde, ameaças na caixa de correio e uma pessoa que teve uma coroa fúnebre colocada diante de sua casa.
Um dos atacados com tinta foi o jornalista Dmitry Muratov, detentor do prêmio Nobel da Paz. O jornal fundado e dirigido por ele, Novaya Gazeta, parou de imprimir edições e de atualizar o site em março, depois de uma segunda advertência do órgão regulador de mídia, que poderia custar o registro de funcionamento.
Dias depois Muratov sofreu um ataque em um trem.
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Mesmo sem funcionar, o jornal continua no alvo do governo Putin, que tenta cassar o registro com base em infrações administrativas.
ONG de direitos humanos é alvo de censura na Rússia
Segundo a organização de monitoramento de direitos humanos digitais Roskomsvoboda, cerca de 7 mil sites foram bloqueados na Rússia por “censura militar” desde o início da guerra com a Ucrânia.
Em agosto, a comunidade da própria OVD-Info no VK, o Facebook da Rússia, foi uma das bloqueadas.
O argumento foi a exibição de “materiais informativos contendo informações socialmente significativas não confiáveis sobre a operação militar especial realizada pelas Forças Armadas de RF, sua forma, métodos de condução de operações de combate, bem como informações sobre ataques a instalações de infraestrutura civil, inúmeras baixas entre a população civil da Ucrânia e nas fileiras das Forças Armadas da Federação Russa, em relação à mobilização geral e outros”.
O Tribunal Distrital de Lukhovitsky também rejeitou recurso para reverter o bloqueio ao site.
No levantamento dos seis meses de guerra, a organização de direitos humanos da Rússia contabilizou censura a pelo menos cinco shows e eventos de artistas expressando sua posição anti-guerra foram censurados.
Os produtores de eventos adotaram em contratos com artistas uma cláusula impedindo manifestações relacionadas à guerra.
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