Organizações internacionais elevaram o tom das críticas ao governo de Volodymyr  Zelensky, condenando abertamente atos recentes de autoridades da Ucrânia vistos como cerceamento da liberdade de imprensa e como tentativa de censura sobre a cobertura da guerra com a Rússia.

O Comitê para Proteção a Jornalistas (CPJ) publicou uma nota exigindo que autoridades locais deixassem de pressionar o trabalho de repórteres e adotasse um processo mais “claro e transparente” para a concessão de credenciais.

A crítica está alinhada a um plano da organização  Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentado ao governo ucraniano no dia 2 de junho, que,  de forma discreta, recriminava ações da Ucrânia em relação à falta de transparência na concessão de autorizações.

Ucrânia censura imprensa por ‘quebra de regras’

Jornalistas têm sido alvo de falta de transparência na aquisição de credenciais e vítima de pressões de autoridades ucranianas, um problema que se agravou desde março deste ano, segundo o CPJ.

Embora tenha subido 37 posições no ranking de liberdade de imprensa da RSF, o país tem registrado recentemente episódios como  limite de acesso de jornalistas a zonas de guerra, cassação de credenciais e acusação de profissionais de imprensa de propaganda pró-Rússia.

Segundo o CPJ, desde março oficiais do SBU, o serviço de inteligência e segurança da Ucrânia “nos moldes da KGB russa”, têm submetido repórteres a interrogatórios ostensivos, e em alguns casos negado credenciais para a cobertura da guerra.  

Seis jornalistas que atuam na cobertura da guerra da Ucrânia relataram ao CPJ terem sido pressionados a inserir “certos ângulos” em seus trabalhos.

As credenciais são emitidas pela junta militar do país e indispensáveis para cobertura presencial nas zonas de conflito.

Diversos sites de notícias no mundo também relatam o problema. De acordo com Ben Smith, editor do Semafor, autoridades já ameaçaram, revogaram ou negaram credenciais a repórteres da NBC News, do The New York Times, CNN, The New Yorker, e do canal digital ucraniano Hromadske.

Os jornalistas foram alvos destas pressões pouco após publicarem reportagens e transmitirem notícias que, segundo as autoridades, feriram regras impostas por autoridades ucranianas.

Em março deste ano, a Ucrânia aprovou uma regra que proíbe jornalistas de trabalharem nas chamadas “zonas vermelhas”, supostamente por serem mais perigosas, exigindo escolta de um assessor de imprensa militar para trabalhar em áreas classificadas como zonas amarelas.

Detector de mentiras e cassação de credenciais na Ucrânia

Entre os episódios de censura e intimidação a jornalistas na guerra da Ucrânia, pelo menos dois repórteres foram submetidos a testes de detecção de mentiras no processo que cassou as credenciais.

Segundo o CPJ, um jornalista, que falou em condições de anonimato, foi solicitado a fazer o teste de detecção de mentiras. O profissional alega ter recusado o teste e, ainda assim, recebido credencial.

Gulnoza Said, coordenador da CPJ na Europa e Ásia Central, criticou o gesto:

“Pedir para que jornalistas passem por testes de detecção de mentiras é uma prática intimidatória e deve parar imediatamente.

Autoridades devem estabelecer um processo mais transparente para conceder credenciais a membros a imprensa que querem cobrir o conflito.”

Outro jornalista ucraniano que colabora para um veículo de notícias do ocidente falou ao CPJ, sob condições de anonimato, que recebeu a credencial após ser questionado por oficiais do SBU sobre suas viagens anteriores a territórios ocupados por russos e seus respectivos contatos com serviços de segurança da Rússia.

Ele relata que um oficial da SBU deu a entender que receberia as credenciais se concordasse em se tornar informante para os serviços de segurança:

“Eles me disseram que como bom cidadão, eu deveria mantê-los informados sobre meus contatos com o FSB (Serviço de Segurança da Rússia) e com os separatistas.

Eu respondi que, como jornalista, eu deveria apenas informar meus editores e leitores e publicar notícias.”

Militares da Ucrânia negam credenciais a fotojornalista

Entre os alvos de censura a jornalistas na guerra da Ucrânia está o fotojornalista ucraniano Anton Skyba, um dos ouvidos pelo CPJ. Colaborador freelance do jornal canadense Globe and Mail, ele foi submetido a dois interrogatórios e não recebeu a credencial.

Ele e outros oito colegas do jornal solicitaram no início de março a renovação de suas credenciais. Em 28 de abril, Skyba passou por uma entrevista “tranquila”, com perguntas sobre a vida dele e se seus familiares, que vivem na zona ocupada de Donestk, tinham passaportes russos.

No entanto, enquanto seus colegas receberam as credenciais, o fotógrafo não teve retorno. O Globe and Mail enviou uma nova solicitação às autoridades da Ucrânia, que o convocaram para outro interrogatório, em 19 de maio.

Na ocasião, Skyba foi “‘bombardeado” de perguntas, acusando-o falsamente de ter passaporte russo e questionando seus contatos com o grupo separatista de Donetsk, com acusações de colaborar com eles. Em 2014, o fotógrafo foi mantido refém por separatistas durante cinco dias.

“Claro que eu conheço essas pessoas, eles são o único ponto de contato para jornalistas obterem credenciais formais para o lado dos separatistas e fazer o trabalho jornalístico. Isso mostra que eles simplesmente não entendem como é o trabalho dos jornalistas.”

Os oficiais alegaram não haver provas de que o jornalista trabalhava para o Globe and Mail, uma vez que não encontraram declarações de impostos vinculando-o ao jornal.

Ao CPJ, Skyba disse que um dos oficiais falou: “eu não te vejo como inimigo, mas não tenho certeza se seu trabalho está alinhado aos interesses da Ucrânia”. Ele diz ter respondido: “não é seu trabalho julgar meu jornalismo.”

Ucrânia diz ter banido ‘apenas uma credencial’

Em resposta a um email do CPJ, um representante das Relações Públicas das Forças Armadas da Ucrânia alega que apenas uma credencial foi cancelada “por violações das regras de trabalho em zona de guerra” e negou qualquer relação com censura após publicação de conteúdo.

A instituição também alega que os militares aprovaram 90% das solicitações de credenciais, todas sob a diretriz de serem entregues “o mais rápido possível”.

No email, a instituição nega a necessidade da credencial para o trabalho jornalístico em zonas de conflito, indicando que a imprensa possa atuar em áreas seguras.

Porém, fontes consultadas pelo CPJ apontam que as credenciais eram solicitadas com tanta frequência que se tornava difícil de trabalhar sem uma — quase como uma nova “carteirinha de imprensa”.