Londres – Para os descrentes do poder transformador da mídia nesses tempos em que tantas pessoas evitam as notícias e duvidam das informações que recebem, uma série de TV no Reino Unido sobre o que é considerado o maior erro judiciário da história do país está provando que o poder existe, mesmo que a narrativa não seja a do jornalismo tradicional.

Mr. Bates x The Post Office, uma nova série da rede ITV, tirou do ostracismo o Horizon, uma caso de más práticas corporativas e falhas da justiça tão escabroso que até parece inventado por um roteirista malvado retratando uma situação da era medieval. 

Mas aconteceu há pouco tempo, e em um país que se orgulha de seu sistema judiciário, de suas instituições democráticas e de sua imprensa vigilante e premiada. Só que nada disso funcionou, e o programa está mudando os rumos dos acontecimentos. 

Erro judiciário retratado com emoção

Lançada em 1º de janeiro e dividida em quatro capítulos, a série da ITV não traz novas denúncias. Seu mérito foi apresentar os fatos reais amplamente documentados pela imprensa em forma de drama, emocionando – e revoltando – o país e quebrando a indiferença em torno do caso que se arrasta há décadas. 

O programa não é o primeiro a dramatizar situações reais, mas seu impacto mostra que a fórmula funciona e pode ser uma alternativa quando os formatos tradicionais não conseguem mobilizar a sociedade o suficiente. 

Post Office é a empresa pública que administra o sistema postal britânico. Em uma combinação mortífera de más práticas corporativas, inação do governo, indiferença do Parlamento, falhas da Justiça e acobertamento, mais de 3 mil pequenos empresários que operavam agências da rede, a maioria dentro de lojinhas como padarias ou armarinhos, tiveram suas vidas devastadas após serem acusados de roubo e fraude entre 1999 e 2015.

As vendas registradas pelos operadores não batiam com que o sistema mostrava, e o Post Office começou a cobrar os valores que aparentemente estariam sendo roubados ou sonegados. Mas o motivo era um erro do software Horizon, fornecido pela Fujitsu, e não má-fé dos empresários. 

Ali começou o calvário. Quando tentavam explicar as discrepâncias, os operadores eram informados pelo telemarketing de que o sistema era infalível e que as diferenças apresentadas aconteciam somente com eles. 

Em uma era sem redes sociais e menos acesso a internet, a maioria deles acreditou nisso e se resignou, chegando a confessar desfalques que não cometeram para se livrar de acusações criminais. 

Condenação ainda não fez justiça 

Apesar de evidências de falha no sistema, conhecidas tanto pela Post Office como pela Fujitsi, os lucros e a preservação da imagem corporativa falaram mais alto. Pelo menos 700 sub-postmasters perderam a licença para operar o negócio e foram processados.

Muitos foram presos − até uma grávida −, quatro cometeram suicídio e a maioria teve a vida arrasada, arcando com dívidas impagáveis e sendo humilhados como criminosos perante famílias, amigos e comunidades.

O herói da história é o subpostmaster Alan Bates, que na vida real tem 69 anos. Inconformado com a situação, ele começou a contactar outros operadores, que até então não sabiam que as falhas não eram isoladas.

Um processo judicial movido por ele em nome do grupo confirmou em 2021 que o Horizon tinha falhas e que a Post Office agiu com “segredo excessivo” sobre seus atos − leia-se recusa a fornecer informações e documentos. Mas a justiça não foi feita – ainda. 

Nenhum executivo foi punido. Pior: em  2019, quando as falhas já tinham se tornado públicas e processo tramitava, a então CEO da empresa, Paula Vennels, recebeu uma alta condecoração da rainha Elizabeth por serviços prestados.

A maior parte da multa imposta à Post Office na condenação foi para o bolso dos advogados e para um fundo que financiou a causa em troca de uma participação expressiva na possível indenização. 

Poucos licenciados foram compensados. As condenações criminais não foram revertidas. Uma comissão parlamentar foi criada há 22 meses e seguia morna até duas semanas atrás, quando o programa da ITV revoltou o país. 

Dramatização do erro judiciário na série criou empatia e provocou reação

A dramatização impressionou mais do que qualquer reportagem já feita sobre o caso e mudou o rumo dos acontecimentos.

Em uma das cenas mais impactantes da série, por exemplo, a franqueada Jo Hamilton vê sua dívida aumentar no computador a cada clique de atualização, enquanto fala ao telefone com uma gélida atendente da Horizon dizendo que não há nada errado com o sistema, causando indignação no espectador e aprofundando a revolta com o erro judiciário e com os envolvidos.

A cena faz parte do trailer do programa, exibido na TV aberta. A série bateu mais de 16 milhões de espectadores em duas semanas, superando o lançamento do seriado Downton Abbey.

Quatro dias exibição do programa, mais de 1 milhão de pessoas haviam assinado uma petição exigindo que Paula Vennels devolva a medalha CBE (Commander of the British Empire). Ela já disse que o fará, embora o processo burocrático para isso não seja simples. 

Em sua primeira fala do ano no Parlamento, o primeiro-ministro Rishi Sunak anunciou um projeto de lei para perdoar e indenizar os condenados, coisa que o governo sempre se esquivou de fazer.

A comissão de inquérito do Parlamento, que seguia sob indiferença da mídia,  passou a ser transmitida ao vivo pelas TVs, expondo representantes do Post Office e da Fujitsu.

O discurso é parecido: todos lamentam e reconhecem os erros. E são marcados sob pressão por Bates e por outros ex-licenciados, que seguem protestando na imprensa contra a lentidão e contra as desculpas pouco convincentes. 

Os contratos da Fujitsu com o governo são agora questionados e podem sofrer uma devassa. 

Dez dias após o início da série, a reputação da marca Post Office medida pelo instituto YouGov, que a sua então CEO queria proteger, caiu de 6,4 para 4,8.

Em um país que adora uma medalha real, muitos querem que Alan Bates seja condecorado, recebendo o CBE dado à Paula Vennels.

Mas quem também merece condecoração é a ITV e os que tiveram a ideia de abordar na série o erro judiciário em um formato diferente, fora do enquadramento do jornalismo tradicional que até hoje não tinha funcionado.

Em entrevista ao The Guardian, a autora do programa, Gwyneth Hughes, disse: “Se você quer realmente chamar a atenção das pessoas, conte uma história. E nesse caso, uma história verdadeira”.

A série está disponível na ITV no Reino Unido, e pode ser vista usando serviços de VPN.