Londres – O primeiro capítulo da série The Princes and the Press (Os Príncipes e a Imprensa), exibido na noite desta segunda-feira (22/11) pela BBC no Reino Unido, não trouxe esperadas revelações sobre a atuação de assessores de William e Harry para alimentar a discórdia dos irmãos na mídia, que podem ter ficado para o segundo capítulo.
Mas nem por isso foi menos incômodo, e não apenas para a família real. O editor de mídia da BBC, Amon Rajan, expôs bastidores da relação da mídia britânica com a realeza, em que uma depende das notícias de alto impacto e outra precisa da simpatia popular para garantir seu futuro em uma nação em que o sentimento antimonárquico cresce pouco a pouco.
Rajan destacou também o racismo na imprensa do país, uma das maiores reclamações dos Sussex quando começaram uma guerra com a imprensa que chegou aos tribunais. Entre as entrevistadas estava Rachel Johnson, irmã do primeiro-ministro Boris Johnson, que há quatro anos escreveu que Meghan tinha um “DNA exótico”.
Monarquia em crise?
Nos dias que antecederam a exibição do documentário, a mídia britânica noticiou que a realeza estava furiosa por ter sido impedida de ver o programa antes de ir ao ar, chegando a circular a notícia de que a BBC seria boicotada.
A revolta que estaria unindo as três casas reais, o Palácio de Buckingham, a Clarence House (onde vive o príncipe Charles) e o Palácio de Kensington, residência de William.
Mas embora vivendo uma crise com o governo em torno de sua principal fonte de financiamento, a BBC não se curvou e o programa foi ao ar, com entrevistas de jornalistas que falaram de suas relações com a corte e com os assessores que transmitem informações.
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Curiosamente, Meghan Markle ganhou espaço para se defender no primeiro episódio. Sua advogada foi uma das entrevistadas e negou as acusações de que ela teria praticado bullying contra funcionários da realeza.
Ainda que os irmãos e familiares próximos não tenham sido diretamente atacados, o programa veio em uma hora em que pesquisas mostram declínio na popularidade de quase todos os integrantes da família real.
Um total de 27% dos britânicos acham que não deve haver um sucessor para Elizabeth II ou não têm opinião formada sobre o futuro depois dela.
O “acordo” da mídia com a família real
Amon Rajan, que dirigiu e apresentou o programa, não faz parte do grupo de “royal correspondents”, os repórteres que fazem a cobertura regular dos assuntos da realeza e têm acesso privilegiado a eventos e informações de bastidores.
E nasceu na Índia, um perfil bem diferente da maioria dos jornalistas britânicos. Para completar, é reconhecidamente antimonarquista.
Jornais e colunistas que defendem a realeza fizeram questão de salientar que o jornalista, um dos mais influentes do país, é um republicano autodeclarado. E lembraram que já rotulou a monarquia de “absurda” e a mídia de “meio de propaganda” para a família real.
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Rajan abriu o programa falando sobre a relação de dependência que sempre existiu entre a mídia e a realeza, o chamado “acordo”. Mas observou que os filhos da princesa Diana, perseguida pela imprensa e morta em uma acidente de carro quando o motorista fugia de paparazi em Paris, poderiam não estar dispostos a fazer o mesmo jogo devido ao trauma que sofreram.
O documentário mostrou como Harry e também William foram tratados de forma impiedosa pela mídia em certos momentos. Em 2017, William enfrentou uma onda de críticas por supostamente atender a poucos compromissos reais, tendo sido apelidado “work-shy” (tímido para o trabalho, em tradução livre).
Relembrou também uma dos maiores escândalos da imprensa britânica, a espionagem de celebridades feita pelo extinto tabloide News of The World, que pertencia ao magnata da mídia Ruppert Murdoch.
Um dos entrevistados de Rajan foi o investigador particular Gavin Burrows, que falou pela primeira vez sobre como espionou uma das namoradas de Harry, Chelsy Davy. Confirmou que ele e outros invadiram as mensagens de voz de Davy, tentaram descobrir se ela havia feito um aborto, tentaram obter seus registros médicos e a examinaram seu passado sexual.
Ele se desculpou pelo que fez, e disse que a cultura de mídia era impiedosa. O príncipe Harry foi uma das celebridades que moveu processo contra o jornal.
Harry e o “Tiaragate” que abalou a família real
Mesmo com William também no alvo dos tabloides em certos momentos, Harry foi sempre mais visado, até porque manteve uma vida agitada, com várias namoradas e episódios que deliciaram a mídia de fofocas, como a ida a uma festa a fantasia usando um símbolo nazista.
O documentário afirma que até o lançamento dos Jogos Invictus, um projeto pessoal do príncipe, a relação dele com a imprensa era boa. Mas tudo começou a azedar depois de Meghan.
Amon Rajan considera o episódio da tiara como o momento em que Harry teria decidido romper o tal acordo. Antes do casamento, Meghan disse que queria usar uma tiara de esmeraldas e o palácio não gostou da ideia, pois a jóia tinha uma associação incômoda com a Rússia.
O caso virou um drama na imprensa, e chegou a ser chamado de “Tiaragate”, com uma fala atribuída a Harry mostrando o poder da futura mulher: “O que Meghan quer, Meghan terá”.
Racismo na mídia britânica
Não há consenso sobre se o Tiaragate foi mesmo o momento de rompimento do acordo de dar notícias positivas e receber informações de bastidores de forma privilegiada.
O programa mostrou biógrafos e ex-correspondentes reais revelando que obtinham informações de fontes internas, como ex-assessores com acesso aos bastidores, mas sem dar nomes ou nada que já não se soubesse antes.
No entanto, os episódios de racismo envolvendo Meghan Markle foram expostos pelo documentário de forma eloquente, com exemplos de manchetes e trechos em que o fato de ela ser filha de mãe negra foi tratado de forma indelicada ou pejorativa.
Na célebre entrevista dada por Harry e Meghan à apresentadora americana Oprah Winfrey, em março passado, eles citaram o racismo da imprensa como uma das razões para derem deixado o Reino Unido e se radicado na Califórnia.
Na época, as declarações desencadearam uma onda de críticas e debates internos na mídia, com uns negando haver discriminação e muitos outros admitindo que ela existe.
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“DNA exótico” na família real
O momento mais impressionante do primeiro episódio do documentário foi a entrevista de Amon Rahan com Rachel Johnson, irmã do primeiro-ministro Boris Johnson. Em uma coluna no tabloide Daily Mail em 2016, ela escreveu que Meghan estava trazendo um “DNA exótico” para a linhagem de Windsor.
Dois anos depois da publicação em 2016, ela pediu desculpas a Harry (não a Meghan) pelas conotações racistas do artigo.
Na conversa com Rajan, a colunista admitiu que hoje em dia não teria escrito a mesma coisa, por parecer “eugenista ou racista”. O apresentador questionou, lembrando que faz apenas quatro anos, e que isso na época já era racismo.
E não foi apenas a frase do DNA. A coluna falava que Meghan tinha falhado no “teste de mãe” que ela voluntariamente passou a fazer com as namoradas do príncipe. Ela pintou a duquesa de Sussex como uma estrangeira manipuladora e o tipo de garota com quem Harry certamente deveria se divertir, mas não se casar.
Não se pode afirmar que o artigo pautou a visão da mídia, mas ele abriu a porta para que outros seguissem abordagem semelhante.
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O futuro da monarquia, segundo as pesquisas
Aos 95 anos, a rainha Elizabeth II não fala em abdicar e prepara as comemorações pelos 70 anos no trono, em 2022. Mas as especulações sobre a sucessão só aumentam no país, e revelações como as que apareceram no programa da BBC não ajudam.
Durante muito tempo, o príncipe William despontava como preferido, já que seu pai, Charles, perdeu popularidade devido ao casamento turbulento com a princesa Diana e depois a união com a namorada da juventude, Camila Parker-Bowles.
No entanto, os ventos começam a soprar de outra forma.
Na mais recente pesquisa do instituto YouGov, que mede a popularidade de figuras públicas de forma regular, William caiu de 73% em admiração para 62% em um ano. Harry passou de 42% para 36%. E Charles de 47% para 45%, figurando apenas em 6º lugar entre os membros da família real mais admirados.
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Porém, quando a pergunta é sobre que deveria suceder Elizabeth II, William ainda é o favorito, mas a preferência por ele caiu, enquanto a de Charles subiu.
E independentemente de quem seja o sucessor, também aumentou de 12% para 16% em dois anos o percentual de britânicos que acham que não deve haver outro monarca depois da rainha Elizabeth II. Somando-se aos que não sabem responder, 27% dos britânicos não se declaram favoráveis a um sucessor.
Ao analisar The Prince and the Press, o crítico de TV do jornal The Guardian, Stuart Jeffries, classsificou o programa de “a mais degradante lavagem de roupa suja real”. E acha que a imprensa pode estar agravando a percepção sobre o futuro da realeza, em linha com o pensamento antimonarquista manifestado por Amon Rajan:
“A mídia, podemos concluir a partir do programa, pode estar levando a monarquia à autodestruição, o que, ironicamente, se adequaria às suas opiniões republicanas.”
Harry e Meghan x Mail On Sunday
O programa chega ao mesmo tempo em Harry e Meghan tiveram um revés no processo que a duquesa de Sussex move contra o jornal Mail on Sunday por conta da publicação de trechos da carta que enviou ao pai depois do casamento.
Há duas semanas, ela admitiu que mentiu para a justiça ao dizer que não havia colaborado para a biografia Finding Freedom, depois que um ex-assessor forneceu à Corte correspondências provando o contrário.
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No domingo, o mesmo jornal citou uma fonte real que teria chamado o documentário de ‘tagarelice’. E disse que a recusa em mostrar uma prévia deixou a rainha Elizabeth, de 95 anos, ‘chateada’.
De acordo com o jornal, o Palácio avisou que não ajudará mais em projetos futuros da BBC, a menos que tenha o direito de responder nesse programa.
Entrevista da princesa Diana abriu crise
O relacionamento da BBC com a família real já vinha tenso, sobretudo depois do escândalo envolvendo o repórter Martin Bashir e a princesa de Gales.
Um relatório da própria redecomprovou este ano que ele usou documentos falsificados para convencer a princesa Diana a conceder uma entrevista histórica, em 1995, em que acusou o príncipe Charles de adultério.
A entrevista levou ao divórcio do casal. A história dos documentos falsos (extratos bancários sugerindo que a realeza estaria pagando espiões para seguir os passos de Diana) chegou a ser revelada na época, mas acabou sendo deixada de lado.
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Bashir foi até promovido, virou estrela na TV americana e voltou para a BBC como editor de religião, cargo que ocupava até o escândalo explodir no início deste ano. Ele deixou a rede, mas o caso não esfriou.
O príncipe William atacou a BBC quando o relatório foi divulgado este ano.
Ele disse que sua mãe “foi reprovada não apenas por um repórter desonesto, mas por líderes da BBC que olharam para o outro lado em vez de fazer perguntas difíceis”.
A BBC já teve que pagar cerca de £ 750 mil ao ex-designer gráfico Matt Wiessler – que acabou pagando a conta e perdendo o emprego quando denunciou aos seus chefes na BBC de que extratos bancários falsos que Bashir pediu que ele simulasse foram usados para garantir a entrevista com Diana. E outros pedidos de indenização ainda são negociados.
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