Londres – A dois dias da nova audiência na Suprema Corte britânica que pode selar o destino do fundador do Wikileaks Julian Assange, sua companheira Stella Moris, convocou a imprensa para questionar os riscos de enviar Assange para o país que planejou sequestrá-lo e matá-lo enquanto estava asilado na embaixada do Equador.

Foi a primeira entrevista coletiva de Morris desde o início do caso. Ela estava acompanhada de Kristinn Hrafnsson, Editor-chefe do site Wikileaks, e de Rebecca Vincent, diretora de campanhas globais da organização Repórteres Sem Fronteiras. 

Moris parecia cansada e abatida, parando de falar algumas vezes e mantendo-se de cabeça baixa. Ela tem dois filhos com Assange, de um relacionamento que surgiu quando o visitava na embaixada do Equador.

Advogada, ela detalhou a linha de defesa que será adotada na fase final do processo, que ressaltará os riscos que o ativista poderá correr se for extraditado.

A suposta intenção dos Estados Unidos de sequestrar Assange e matá-lo durante o período em que ele estava asilado na Embaixada do Equador foi revelada em denúncia publicada pelo Yahoo, com base em documentos obtidos pelo site que servirão de base para a argumentação da defesa de Assange.

Yahoo revelou plano dos EUA para matar Assange

Em setembro, o Yahoo revelou que a CIA, agência do serviço secreto dos Estados Unidos (EUA), avaliou sequestrar e matar o fundador do Wikileaks, Julian Assange em 2017. 

Na época, Assange entrava em seu quinto ano asilado na embaixada do Equador em Londres, e funcionários do governo Trump debatiam a legalidade e praticidade de uma operação para retirar o ativista do local, segundo a apuração.

Altos funcionários da CIA e da administração Trump solicitaram “esboços” de como assassiná-lo. As discussões sobre o sequestro e possível assassinato de Assange ocorreram “nos escalões mais altos” do governo Trump, disse um ex-oficial da contra-espionagem ao Yahoo. “Parecia não haver limites.”

Leia mais |CIA avaliou sequestrar Julian Assange de embaixada em Londres e matá-lo, afirma reportagem

Processo inclui 18 acusações

Na última decisão do processo, a magistrada Vanessa Baraister manteve Assange no Reino Unido. Ela acatou a tese da defesa de que ele poderia cometer suicídio se fosse extraditado para os Estados Unidos a fim de responder perante a Justiça americana pelo vazamento de segredos de guerra do país por meio do Wikileaks. 

Assange enfrenta 18 acusações — 17 sob a Lei de Espionagem e uma sob a Lei de Fraude e Abuso de Computador — podendo ser condenado a até 175 anos de cadeia. Está preso desde 2019 na prisão de Belmarsh, em Londres, onde completou 50 anos de idade em julho. 

Decisão em dezembro  

A audiência que começa nesta quarta-feira vai durar dois dias, mas o resultado só deve sair entre quatro e seis semanas. E os Estados Unidos ainda podem tentar outros recursos, segundo Hrafnsson, editor do Wikileaks.

A defesa não pretende interpelar uma apelação formal. As revelações do Yahoo serão apresentadas à corte no segundo dia da audiência, como parte da tentativa de convencer a corte sobre os riscos de morte que Assange poderá correr em caso de aprovação da extradição. 

Outro argumento será tentar desqualificar as garantias oferecidas pelos governo americano para que Assange seja extraditado sem riscos de cometer suicídio ou sofrer maus-tratos psicológicos que agravem sua situação. 

Hranfsson salientou que as garantias só foram apresentadas depois que os EUA já tinham perdido o caso: 

“Isso não deveria ser admitido pela justiça britânica. Não se pode fazer uma emenda depois que se perde um caso”.

Comparação com o caso de Khashoggi

O editor do Wikileaks acha que a justiça britânica foi enganada em vários pontos pelos Estados Unidos.  E comparou o caso de Assange ao de Jamal Khashoggi, jornalista assassinado na embaixada da Arábia Saudita na Turquia por agentes sauditas. 

“Um governo planejou a morte de Khashoggi, assim como o governo americano planejou a morte de Assange. A diferença é que no caso do saudita o plano foi executado. Mas as vítimas são as mesmas: os jornalistas”. 

Hrafnsson observou ainda que o argumento usado pelos Estados Unidos para processar Julian Assange depois que ficou comprovada a ausência de ligações dele com a Rússia, o de espionagem, coloca-o sujeito a medidas drásticas, como sequestro e até assassinato. 

O editor argumentou que se os Estados Unidos planejaram atentar contra a vida de Assange, pode agir da mesma maneira contra outros jornalistas na Europa que publiquem segredos de estado. 

Leia também | Facebook lista Brasil entre os 3 países com prioridade máxima para moderação de conteúdo político

Caso sem precedentes, segundo a Repórteres sem Fronteiras

A representante da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Rebecca Vincent, enfatizou a gravidade do caso para a imprensa. 

“Assange foi atacado por contribuição ao jornalismo, e as consequências são severas, não apenas nos Estados Unidos ou no Reino Unido, mas no mundo. Isso não vai parar só com o caso dele”, disse. 

A diretora da RSF criticou também a posição do Reino Unido. Ela acha que o que está acontecendo com Assange não tem precedentes nos casos já acompanhados pela entidade, mesmo em países sob ditadura.  

Estado emocional de Assange 

A companheira de Assange não deu detalhes sobre o estado emocional de Assange ou sobre o que ele espera da audiência. Disse apenas que a situação melhorou depois do fim do lockdown, e que tem visitado o companheiro na prisão, acompanhada dos filhos.  

Moris afirmou que o ambiente na prisão é opressor, em uma cadeia construída na década de 70 para abrigar presos políticos do IRA (Exército Republicano Irlandês). 

Ela disse que a sensação é a mesma que sentia quando visitava Julian Assange na embaixada do Equador, quando tinha a impressão de vigilância que depois se confirmou com as denúncias do Yahoo de que a CIA, então sob o comando de Mike Pompeo, avaliou vários planos para sequestrar e matar o ativista. 

Por essa razão, Moris contou que deixou de visitar o companheiro na representação diplomática durante o período em que estava grávida do segundo filho, pois se considerava um alvo e não sabia como as conversas poderiam ser aproveitadas para reunir evidências contra Assange. 

Moris disse que havia agentes mercenários na embaixada, e que uma das possibilidades consideradas era a de deixar a porta propositalmente aberta para que ele fosse capturado. 

Pedido de retirada das acusações 

Os que defendem Assange pedem para que ele não seja extraditado e que o Governo americano retire as acusações contra ele. Também pedem que sejam presos os “criminosos de guerra” denunciados no vazamento de documentos confidenciais que revelaram a atuação de forças americanas na Guerra do Iraque.  

Os documentos expuseram segredos sobre a guerra cibernética da agência de inteligência do país, a CIA, incluindo o uso extensivo de malware e a capacidade de colocar marcadores “reveladores” em seus próprios hackeamentos, com o objetivo de atribuí-los a potências estrangeiras como a Rússia e o Irã.

No sábado (23/10), ativistas marcharam em Londres e em outras cidades do Reino Unido a favor do fundador do WikiLeaks.

Extradição para a Austrália como alternativa

O pai de Assange, John Shipton, vem comandando uma campanha na Austrália para que ele seja libertado pelo Reino Unido e levado ao país natal, que ganhou a adesão de parlamentares australianos e figuras importantes da sociedade local.

Já a companheira Stella Moris lidera os esforços pela libertação de Assange no Reino Unido. Ela afirma que ele não deveria estar preso em lugar nenhum, “porque jornalismo não é crime”. 

Perguntada sobre para onde Assange gostaria de ir quando for libertado, e qual o país considera seu lar, Moris disse que o lar dele é onde ele poderá estar com ela e com os filhos. 

Ela acrescentou que nem a Austrália e nem o Reino Unido têm apresentado garantias que permitiriam a Assange viver em segurança. Mas descartou a possibilidade de irem para a Rússia. 

Fim do processo 

Na semana passada, vinte organizações, incluindo a Anistia Internacional, o Comitê para a Proteção de Jornalistas e a Repórteres sem Fronteiras, entregaram ao procurador-geral do governo americano, Merrick Garland, uma petição apelando pelo fim do processo. A carta diz: 

 “[O] processo contra o Sr. Assange põe em risco o jornalismo que é crucial para a democracia. Em nossa opinião, um precedente criado pelo processo contra Assange poderia ser usado contra editores e jornalistas, paralisando seu trabalho e minando a liberdade de imprensa.”

A saga judicial de Assange

A saga judicial do fundador do Wikileaks começou em 2012, quando ele pediu asilo na Embaixada do Equador em Londres a fim de evitar um pedido de extradição da Suécia para responder a um processo de assédio sexual.

A ação de assédio acabou arquivada, mas Assange passou a enfrentar o risco de ser levado para os EUA devido ao vazamento dos documentos confidenciais. Assange se manteve por sete anos na representação diplomática equatoriana, inicialmente com o apoio do então presidente Rafael Correa. 

O ativista chegou a ganhar cidadania equatoriana, como parte de uma tentativa de Correa de lhe conceder status diplomático, o que permitiria que deixasse a embaixada sem riscos de ser preso devido à imunidade. Mas o Reino Unido não aceitou as credenciais de Assange como diplomata. 

Leia também | Nobel da Paz a jornalistas reconhece perseguição à imprensa como ameaça à paz e democracia

Foi durante o período em que esteve asilado, que o fundador do Wikileaks iniciou seu relacionamento com a advogada Stella Moris, com quem teve dois filhos. Mas a notícia só foi revelada depois que ele deixou a embaixada, em 2019. 

A presença de Assange passou a se tornar incômoda para o governo equatoriano após a posse do presidente Lenin Moreno, opositor de Correa. Notícias sobre irregularidades em seu asilo e o desconforto dos funcionários diplomáticos começaram a vazar para a imprensa britânica. 

Em 2019, Assange foi entregue pelo Equador à polícia, que teve acesso ao interior da embaixada para capturá-lo e levá-lo para a prisão de Belmarsh, onde permanece à espera de uma sentença.

Em julho deste ano, a cidadania equatoriana foi revogada. Não tem efeito prático sobre o processo, mas demonstra o quanto Assange se tornou persona non grata para o atual governo equatoriano.

Leia mais: Equador revoga cidadania concedida a Assange durante asilo em embaixada

O processo 

A decisão que manteve Assange em solo britânico foi anunciada no dia 4 de janeiro passado pela juíza Vanessa Baraister,que entendeu haver risco de suicídio caso ele fosse entregue aos americanos.  

Os EUA entraram com um pedido de apelação logo depois da posse de Joe Biden, que assim se tornou o terceiro presidente a manter a rivalidade com o homem que vazou segredos militares do país, uma história que começou com Barack Obama em 2016.

Leia também: Companheira de Assange recusa proposta dos EUA de autorizá-lo a cumprir pena na Austrália

As garantias dos Estados Unidos

No dia 7 de julho, a juíza concedeu aos Estados Unidos o direito de apelação, mas só quanto a três aspectos processuais e não quanto ao mérito ou à apresentação de novas provas que poderiam mudar a sentença. 

O governo americano apresentou então um pacote de garantias para tentar reverter a sentença baseada no risco de suicídio, incluindo a possibilidade de que, se condenado, poderia cumprir a pena na Austrália. 

Os EUA asseguraram também à justiça britânica que se Assange fosse extraditado, não seria colocado na rigorosa prisão de segurança máxima Supermax ADX,  e não seria submetido às Medidas Administrativas Especiais (SAMs) . 

Mas as garantias incluíam algumas ressalvas. O país reservou-se o direito  de usar essas medidas se o Departamento de Estado entender que Assange “fez algo subsequente à oferta dessas garantias que atenda aos requisitos para a imposição de SAMs ou designação para ADX.”

Leia também  Dois anos de prisão de Julian Assange: protestos e pressões pelo mundo

Anistia Internacional condenou ressalvas das garantias

A Anistia Internacional afirmou na época  que a possibilidade de alterar os termos das garantias essenciais após a transferência de Assange para os EUA faz com que elas sejam irrelevantes, uma vez que ele “permaneceria em risco de sofrer maus tratos na detenção nos EUA no momento da transferência e posteriormente”.

Julia Hall, especialista da Anistia Internacional em Antiterrorismo, Justiça Criminal e Direitos Humanos, afirmou:

“Essas não são garantias de forma alguma […]  pois prometem fazer algo, mas ao mesmo tempo asseguram o direito de quebrar a promessa.”

A  oferta de autorizar o cumprimento da pena de uma eventual condenação em uma prisão na Austrália  foi recusada pela companheira de Assange e por sua equipe jurídica.

Segundo os advogados de Julian Assange, o que os Estados Unidos oferecem é um direito que ele sempre teve, o de solicitar a transferência da prisão para terminar o cumprimento da pena.

No entanto, Stella Moris alertou para o tempo que isso poderia levar, e classificou a ideia de “revoltante”. Eles continuaram insistindo na retirada das acusações e libertação imediata. 

Leia também Companheira de Assange recusa proposta dos EUA de autorizá-lo a cumprir pena na Austrália

Os argumentos dos Estados Unidos

O jogo virou a favor dos americanos em agosto, quando a corte ampliou o direito de apelação do país. Com a decisão, os cinco pontos do veredito questionados pelos Estados Unidos foram aceitos para serem examinados, com o resultado a ser anunciado no dia 27. 

Os pontos que haviam ficado de fora e agora estão sendo revistos pela Suprema Corte são importantes.

Um deles é justamente o diagnóstico feito pelo médico psiquiatra Michael Kopelman, que atestou o risco de suicídio em caso de extradição. Se a juíza desconsiderar o laudo, o fundamento do risco de suicídio de Assange fica enfraquecido.

O outro é uma suposta aplicação errada da seção 91 da Lei de Extradição de 2003. O dispositivo diz que alguém não pode ser extraditado se a “condição física ou mental for tal que seria injusto ou opressor extraditá-la”.

Mas os EUA contestam a forma como essa lei foi aplicada. O país alega que a juíza deveria ter notificado a acusação de que ela considerava a extradição injusta ou opressiva, permitindo o fornecimento de garantias ao Tribunal com antecedência. 

A decisão de agosto foi uma derrota para a defesa do homem que vazou segredos de guerra americanos pelo site Wikileaks. A companheira de Assange, Stella Moris deu no dia do resultado um depoimento emocionado, dizendo que as vidas de sua família estão em jogo. 

Trunfos da defesa

Mas a defesa tem trunfos. Um deles foi a revelação feita pelo jornal finlandês Studin no dia 26 de junho que uma importante testemunha no caso do Departamento de Justiça dos Estados Unidos admitiu ter inventado acusações contra o fundador do Wikileaks. 

Segundo o jornal, Sigurdur Ingi Thordarson, que tem histórico de sociopatia e acumula condenações por abuso sexual de menores e fraude financeira, confirmou em entrevista ter sido recrutado pelas autoridades dos Estados Unidos para construir evidências contra Assange depois de induzi-los a acreditar que ele era próximo ao ativista. 

Campanha nas ruas e nas redes sociais 

Julian Assange se tornou um símbolo mundial de luta pela liberdade de imprensa e de expressão. Quando ele completou 50 anos, em julho, manifestações aconteceram em vários países pedindo o fim dos processos. 

Em Londres, onde se concentram muitos apoiadores do fundador do Wikileaks por ele estar preso em Belmarsh, um piquenique foi organizado nos jardins em frente ao Parlamento.

Leia mais | Julian Assange faz 50 anos; protestos pelo mundo pedem libertação

Os organizadores levaram um bolo de aniversário, e a famosa estilista Vivienne Westwood esfregou pedaços no rosto para protestar contra o que chamou de “um mundo doente”.  

Incansável, Stella Morris estava presente na manifestação, acompanhada de seus dois filhos com Assange.

Nas redes sociais, a campanha pela liberdade de Assange conta com grupos organizados em vários países.

Na Alemanha, um grupo de apoio criou uma videoclipe com uma música destacando o trabalho do ativista. A canção está disponível em alemão, inglês, francês e russo, e pede liberdade para o whisteblower (informante). 

Leia também:

Resposta falha à Covid faz Brasil perder US$ 93 bilhões no valor da marca nacional, estima consultoria global