Londres – O que era para ser um período de notícias positivas antecipando um grande acontecimento, a primeira coroação na monarquia britânica em 70 anos, está se demonstrado um pesadelo para o rei Charles e para a realeza, com uma sucessão de problemas que começam a ofuscar o brilho da cerimônia programada para maio, apesar dos esforços da eficiente máquina de relações públicas do Palácio de Buckingham. 

Enquanto a rainha Elizabeth II conduziu seu reinado sob o signo da discrição, evitando se envolver em polêmicas ou tomar decisões que pudessem criar controvérsia, o filho Charles segue o caminho oposto, expondo ainda mais as rusgas familiares e cometendo o pecado mortal para os tradicionalistas de se envolver em política. 

Em um curto período de uma semana, a monarquia trouxe voluntariamente de volta à mídia a discórdia com Harry e Meghan ao resolver tomar de volta a casa em que o casal morava quando viviam no Reino Unido, dentro dos limites do Castelo de Windsor.

Para lá iria (ou irá) o encrencado príncipe Andrew, que caiu em desgraça depois do envolvimento em um escândalo de abuso sexual.

Ele acabou perdendo as funções oficiais, as condecorações e o apoio do irmão agora rei, que dá sinais de não querer sustentá-lo nos mesmos termos que a mãe fazia – acontece nas melhores famílias. 

Mas Andrew não estaria satisfeito – “fontes” fizeram chegar a infelicidade à mídia – , pois a nova casa, com apenas 10 quartos,  é bem menor do que o Royal Lodge, um nada modesto palácio de 31 quartos em que ele vive com a ex-mulher, Sarah Ferguson. Outro motivo para notícias e postagens desfavoráveis nas redes sociais. 

A confusão imobiliária foi vista como revanche, depois que Harry e Meghan não pouparam críticas aos familiares no documentário que estrelaram na Netflix e no livro Spare. 

Desde que a data da coroação foi anunciada (será entre 6 e 8 de maio, com uma série de festividades), começou a especulação sobre se o casal seria convidado, e se aceitaria o convite. 

O pedido da casa Frogmore, que eles alugavam da realeza para quando estivessem no Reino Unido, foi interpretado pelos especialistas em decodificar os sinais emitidos pelos movimentos da monarquia como indicativo de que dificilmente o casal participará da cerimônia. 

Depois de decidirem deixar uma casa menor dentro do Palácio de Kensington, onde moravam também William e Kate, Harry e Meghan mornaram em Frogmore por vários meses até 2019, quando romperam oficialmente com as funções oficiais e anunciaram a mudança para os EUA . 

Foram gastos US$ 3,2 milhões em uma ampla reforma, pagos pelo Sovereign Grant, o fundo do Reino Unido reservado para a família real alimentado pelos contribuintes. Em 2020, um porta-voz do casal anunciou que Harry devolveu aos cofres reais os custos da reforma.

A realeza pode até ter razão em pedir a casa de volta, visto que Harry e Meghan praticamente não a usaram – e pode haver um interesse de tirar Andrew de uma residência com alto custo de manutenção. 

No entanto, o pedido da forma e no momento em que foi feito, a dois meses da coroação,  é um desastre de relações públicas que não era comum na era de Elizabeth II.

Foi tão surpreendente que a imprensa britânica chegou a duvidar que fosse verdade. Mas na quarta-feira (1) veio a confirmação. 

“Podemos confirmar que o duque e a duquesa de Sussex foram solicitados a desocupar sua residência em Frogmore Cottage”, disse um porta-voz do casal em um comunicado.

As notícias são de que eles ficaram “assombrados” com o pedido, que segundo o tabloide britânico The Sun teria sido feito no dia 11 de janeiro, logo após a publicação de “Spare”. 

O assunto tomou conta das redes sociais, em postagens da imprensa e em contas dedicadas a comentar assuntos da monarquia – algumas citadas em reportagens de jornais, como a de R.S.Locke. 

Os que admiram Harry e Meghan saem em defesa do casal, comprometendo a reputação do pai – e da monarquia que ele agora representa. Esta usuária do Twitter diz que o despejo apenas confirma o que Harry escreveu sobre o pai no livro Spare. 

Estrelas pop esnobam coroação do rei Charles 

Caso realmente não participem da coroação por falta de lugar para dormir, Harry e Meghan não devem se frustrar por perder um grande show de estrelas pop, apresentado como ponto alto da festa. 

Artistas reconhecidos recusaram o convite para se apresentar no evento programado para ser uma demonstração de modernização da monarquia e alinhamento ao mundo contemporâneo – uma “rejuvenescida” para a imagem de coisa do passado. 

O concerto será realizado no dia 6 de maio nos jardins do Castelo de Windsor, com transmissão ao vivo pela BBC.

A rede anunciou que durante o fim de semana da coroação o sinal seria liberado para exibição dos eventos em festas ou locais públicos, sem pagamento da taxa obrigatória para assistir aos canais da rede.

Um sorteio foi aberto para distribuir ingressos a quem se inscrevesse pela internet. Mas oOs que correram para se inscrever contando em ver nomes tradicionais da música pop britânica perderam tempo.

Em um sinal de desprestígio do novo rei ou desinteresse em se associar à monarquia, gente de peso como Adele, Elton John, Harry Styles, Robbie Williams e Spicy Girls estão entre os que mandaram gentilmente avisar que não poderão participar, alguns aegando problemas de agenda. 

No caso de Elton John, um dos nomes cogitados, seria difícil que aceitasse. Ele era um dos amigos mais próximos da princesa Diana, que sofreu horrores com a infidelidade do marido Charles com a atual rainha consorte, Camilla. 

A família real enfrentou uma série de desastres de relações públicas nos últimos tempos, e qualquer um que se apresentar no show deve considerar uma reação de seus fãs por aparecer”, disse à revista Rolling Stones o publicitário Simon Jones, que gerencia a imagem de Little Mix, Niall Horan e Louis Tomlinson.

Charles: popularidade em baixa antes da coroação 

Tudo isso parece futilidade e briga de família para deliciar jornais tabloides e revista de fofocas.

Não é, pois abala a imagem de uma monarquia que tem diante de si o desafio de se fazer tão querida e relevante quanto na era de Elizabeth II, em um mundo com muito mais cobranças sobre temas como igualdade, colonialismo e concentração de riqueza.

E com redes sociais cheias de gente que não adota a tradicional cordialidade da maioria da imprensa tradicional britânica com a monarquia, coisa que a rainha não experimentou em boa parte de seu reinado. 

As pesquisas mostram que a popularidade do rei Charles continua baixa, e caiu mais depois dos ataques de Harry e Meghan. A mais recente enquete do Instituto YouGov, que mede regularmente a imagem de pessoas públicas, refere-se ao último trimestre de 2022 e não capturou ainda os efeitos do livro Spare. 

Gráfico popularidade monarquia britânica coroação rei Charles

Charles continuava na mesma posição anterior, em 5º lugar,  com apenas 56% de admiração, e bem distante de sua irmã, Anne, uma figura discreta que segue o exemplo da mãe: sorri muito, pouco fala e não se engaja em debates arriscados. 

Charles, Brexit e a revolta dos conservadores 

Mas para quem ainda acha que tudo isso é futilidade, há uma crise pior no período que antecede a coroação, institucional. Na segunda-feira (27),  o rei Charles recebeu a presidente da comissão europeia, Ursula von der Leyen, para um chá no Castelo de Windsor. 

Seria normal se fosse apenas uma aproximação social.

No entanto, a líder europeia estava no Reino Unido para tratar de um dos assuntos mais espinhosos da política britânica: uma solução para o impasse da Irlanda do Norte depois do Brexit.

O país, que faz parte do Reino Unido e saiu da União Europeia junto com as demais nações britânicas, está na mesma ilha que a vizinha Irlanda, país independente que continua integrante do bloco.

O impasse reside na resistência a um sistema alfandegário para mercadorias transportadas entre a  Grã-Bretanha – Inglaterra, Escócia e País de Gales – que colocaria uma fronteira no Mar da Irlanda, isolando Belfast do resto do Reino Unido e privando-o de autonomia por causa de sua adesão aos sistemas jurídicos da UE .

O acordo costurado entre o governo britânico e a União Europeia desagrada a muitos – do ex-primeiro-ministro Boris Johnson, do mesmo partido do atual, Rishi Sunak, aos defensores do Brexit e aos irlandeses do norte. Em vez de ficar longe da confusão, Charles se aproximou dela sem a menor necessidade.

“Não consigo acreditar que Número 10 [como é chamada a casa em Downing Street 10, sede do governo britânico] pediria à  Sua Majestade, o rei, para se envolver na finalização de um acordo tão controverso como este”, tuitou a ex-primeira-ministra da Irlanda do Norte, Arlene Foster. O movimento “grosseiro”, disse ela, “cairia muito mal” na Irlanda do Norte.

Brexit, comércio, política – tudo isso sempre esteve longe da figura da rainha Elizabeth II, pelo menos publicamente. Um dos dogmas da monarquia é justamente manter-se como a chefia de Estado, sem participar de assuntos de governo. 

O movimento de Charles irritou até políticos conservadores, que se alarmaram ao ver o rei se envolvendo em polêmicas. Os conservadores são em geral favoráveis à monarquia. Muitos são aristocratas que desejam manter as coisas como estão. 

Se o rei Charles se desgasta publicamente, pode dar mais elementos para os que defendem o fim do regime, pesadelo para os mais tradicionais e para os que enxergam na monarquia um pilar de estabilidade e referência para o país na arena internacional. 

O ativo grupo antimonarquia Republic está convocando um protesto para o dia da coroação, e questionando os custos da festa de três dias, que terá até um feriado nacional. 

Na comunicação oficial, tudo segue igual 

Uma coisa não mudou na “nova” monarquia, pelo menos por enquanto. Na comunicação oficial, o Palácio de Buckingham não se refere aos temas polêmicos nem responde ou comenta sobre controvérsias, mantendo o lema atribuído à Elizabeth II: “não reclame, não explique”.

No entanto, com a imprensa alerta e as redes sociais fervilhando, torna-se incontrolável a onda de comentários e de notícias negativas fazendo referência a discórdias na família que deveria ser modelo, e o risco institucional da associação da figura do rei a temas políticos. 

Em um episódio da última temporada da série The Crown, os atores representando o príncipe Charles e o primeiro-ministro John Major aparecem em uma conversa supostamente pedida pelo herdeiro da Coroa, sugerindo que deveria haver uma “abreviação” do reinado da mãe para trazer novos ares à monarquia, modernizando-a. 

Todos os envolvidos negam que a reunião tenha ocorrido, e a cena causou revolta quando foi exibida.

Mas os primeiros meses do rei Charles no posto estão demonstrando que ele não segue exatamente a cartilha da mãe. E nem todos estão gostando das ideias de modernização, que estão indo além de convidar o designer do iPhone para criar a logomarca da coroação. 

As contas de mídia social da família real seguem ignorando as conversas e notícias negativas e continuam apostando em conteúdos que promovem atividades de caráter social, com a realeza apoiando causas e fazendo encontros protocolares. 

Ao mesmo tempo, a assessoria de comunicação do Palácio de Buckingham alimenta freneticamente a mídia tradicional e as redes sociais com comunicados sobre os preparativos para a coroação do rei Charles, em uma clara estratégia de ocupar espaços e criar expectativa.

Nesta sexta-feira (3), chegou  a notícia de que o óleo da coroação foi consagrado em Jerusalém, com detalhes sobre a composição, o local de onde as azeitonas foram extraídas e declarações dos religiosos. Logo virou notícia em jornais e TVs. 

A imprensa britânica continua consumindo as informações oficiais com avidez, porque o público também as consome.

Mas diferentemente da era Elizabeteana, elas não são mais suficientes para assegurar uma cobertura exclusivamente positiva, porque os fatos negativos se sucedem em velocidade que a saudosa (para muitos) rainha não viu.

E se estiver vendo de algum lugar, deve estar pensando se não teria sido melhor aceitar os conselhos que recomendavam “pular” Charles e transferir a coroa e o cetro diretamente aos populares e bem-comportados William e Kate. 

A monarquia e o soft power britânico 

A monarquia é um grande negócio, alimenta o turismo e é vital para o soft power da Grã-Bretanha – a capacidade de um país influenciar os demais sem uso de armas ou poderio econômico. 

Países importantes da Commonwealth (Comunidade das Nações), que reúne a maioria das ex-colônias, dão passos para reduzir a influência da monarquia ou deixar de ter o rei inglês como chefe de Estado. 

Nesta semana, a consultoria britânica Brand Finance divulgou o Global Soft Power Index, um ranking dos países que mais influenciam os demais. O Reino Unido continuou em segundo lugar, atrás dos EUA. 

A pesquisa, feita com mais de 100 milhões de pessoas no mundo, ainda capturou o impacto da popularidade da rainha Elizabeth, que em junho de 2022 celebrou o Jubileu de Platina e morreu em setembro, causando uma comoção popular dentro e fora do país. 

O teste de fogo para a monarquia sob o rei Charles será a próxima pesquisa, que demonstrará se a mudança de atitude e atos de risco como pedir a casa de Harry e Meghan de volta ou entrar na briga do Brexit serão interpretadas de forma positiva ou negativa.